Minha resposta ao Danilo Gentilli sobre a piada (ironia) de homicídio de homossexuais:
Prezado Danilo Gentili,
Como muitos, sou um telespectador. Ou como qualquer um, na verdade – pois a lógica midiática atual nos considera a nós, seres humanos, números com que aumentar lucros e, por esta razão, descartáveis e substituíveis. As críticas que eu fizer a tal ou qual programa, propaganda, não serão impactantes conquanto eu possa ser, número que sou, trocado por outro “número”, bastando cooptá-lo na tão valorosa (ironia) tarefa de aumentar o “ibope” e o sucesso das suas produções.
Mas, ainda assim, e talvez porque ainda me reste a dignidade de um ser humano em latência (elemento esquecido da lógica midiática), eu insisto em criticar e em refletir sobre o que se passa e o que se profere em nome dessa liberdade de expressão e de comunicação que, a despeito do que se impõe a todos os demais direitos fundamentais (isto é, sua equiparação), se considera superior a todos os demais e, por isso, intocável.
Suas “piadas” são abjetas e a última delas (sobre homicídios de homossexuais), um delito. Não se preocupe: a homofobia não foi criminalizada pelo nosso Congresso, composto por representantes de “números” quando eles mesmos não o são. Mas incentivar a intolerância, a violência, achar risível a miséria humana (sempre esqueço do desconhecimento da mídia sobre o assunto) e torná-la porta de entrada de lucros é dos atos cruéis o mais comum e, por isso mesmo, o mais velado e recorrente.
Penso agora que os “números” que picharam as paredes do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, com os dizeres “Quem gosta de dar, gosta de apanhar”, devem ter rido bastante com a sua piada infame. Parabéns por diverti-los e, num mesmo ato de “expressão”, ter varrido para debaixo do tapete toda a violência contra pessoas que não têm como se defender, a não ser assumindo estereótipos também engraçados (ironia) de alguém que gosta de dar o cu e que, na sua visão que é a de muitos, limita-se a isso.
Este “número” que vos fala ainda tem uma voz (aliás, talvez fosse o caso de vossa senhoria começar a pensar em piadas que nos tornem também mudos, para facilitar a liberdade de vocês, “comunicadores sociais”) e ela não quer se calar diante do riso irrisível.
Ao contrário do que imagina, não é dando o cu que você conseguirá ter mais segurança. Sinto informá-lo (se este tiver sido o seu único plano de autodefesa), mas isto apenas o tornará alvo da violência, que não se limita a uma violência de sangue.
Você será violentado pelo alijamento familiar; pela incompreensão dos pais; pela segregação nas escolas de “alunos-números” e de “educadores-números”; pela restrição de direitos civis; por atos de tortura institucional; por espancamentos, escarradas e ofensas dadas ao acaso, enquanto passeia pela Avenida Paulista e pelas ruas do seu bairro; pelo assassinato motivado por sua condição. Você será, por fim, violentado pela impossibilidade de constituir relações de afeto verdadeiras (pois o parceiro tem medo do som do riso que pessoas como você provocaram).
O riso, ao contrário do que pensa (pensa mesmo?) não é um mero ato de divertimento: o riso é um instrumento de poder.
Por ele, os que “nos fazem rir” expõem o “objeto risível” e, assim, colocam as coisas nos seus “devidos lugares” (ironia).
Por que continuamos, os “números”, a rir, então? Porque ao rir nós nos apartamos do objeto risível. Dizemos aos outros “números” do lado que nós somos tão humanos como eles (costumavam ser), que não somos aquilo de que se ri e que, portanto, somos iguais e fazemos parte do Todo. Porque no fundo sempre fizemos – mas não rir de algo tão engraçado como a sua piada (ironia) é nos colocar novamente na posição de vítima em potencial.
Asseguro a vossa senhoria (uma potestade da liberdade de expressão) que muitos dos que “gostam de dar o cu” também riram da sua sublime colocação (ironia), mas posso imaginar como lhes dói o peito que teve não só que soltar em espasmos o ar contido (isso é o riso e tão-só), como abjurar da própria dignidade para não serem, depois, cerceados da própria vida.
Você como hétero (imagino) deve achar engraçado que algumas pessoas dêem seus cus a custa de… nada? Apenas para informá-lo (talvez não o saiba ou finja não saber), a sexualidade das pessoas é muito mais do que o sexo que praticam. Mas isto pouco importa quando os “números” estão satisfeitos e se pode dormir tranqüilo, embora com menos segurança, já que não terá dado o cu naquele dia, não é mesmo?
Homossexuais que são mortos e entram para uma lista específica de homicídios (“números” que não dão “ibope”) não o são pelas mesmas razões por que heterossexuais são mortos. Morrem pela intolerância geral extravasada numa agressão física de inconseqüentes insatisfeitos com seu próprio vazio.
E me atrevo a dizer o seguinte: os que “gostam de dar o cu” morrem duas vezes: pelo sangue que jorra enquanto caídos ao léu numa rua pacata das grandes cidades e pelo pesado som do riso dos que tem o poder da graça.
Espero ter contribuído por uma dupla forma: a primeira, pontuando na minha fala o que foi irônico do que não foi (isto facilita a compreensão dos que não exercem, com freqüência, o dom humano do pensamento). Em segundo lugar, dizendo-lhe, sim, para recear o politicamente correto, porque todo direito humano – como a liberdade de expressão – deve ser limitado quando fere outro direito humano – e posso afirmar que a piada sobre homicídios por atos de intolerância contra homossexuais fere muitos direitos humanos fundamentais: a dignidade das vítimas, principalmente, e, indiretamente, seu direito à liberdade de pensamento, de locomoção, seu direito à integridade física-psíquica e à vida (considerando que a piada é hábil instrumental potencializador de toda a violência já cometida).
Desejo, por fim, que pense em incentivar risos melhores e o aconselho (ser humano que sou) a se divertir com objetos menos dramáticos – pois aí está uma incoerência teatral imperdoável para um ator (ironia).
Atenciosamente,
Tédney Moreira da Silva (ex-telespectador substituível)
Fonte: Mariafro