Trabalho escravo resiste na ambição e impunidade

Por Marianne Bufalo

Após 124 anos da sanção da Lei Áurea (13 de maio de 1888), as questões do trabalho escravo ainda são contemporâneas. Tramita no Senado a PEC do trabalho escravo, que fora aprovada como PEC 438 na Câmara dos Deputados, no dia 22 de maio. Depois de quase oito anos parada à espera de votação, congressistas aprovaram a Proposta de Emenda Constitucional. O projeto pelo fim do trabalho escravo desafia ruralistas que fizeram de tudo para adiar a votação da proposta que estava prevista para o dia 9 de maio. Por causa das reclamações desses parlamentares, o presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS) remarcou a votação para dia o 22. Entre os motivos das queixas, está o fato de a PEC prever a expropriação de terras onde for constatado trabalho análogo à escravidão.

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Segundo a pesquisadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Territorialidades e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados da USP, Neli Aparecida de Mello –Théry “falta coragem por parte do governo para confiscar terras que se utilizem de trabalho escravo”. Para a pesquisadora, a “grande contra-reforma agrária” que o Brasil passou, por volta da década de 70, trouxe como consequência o aumento do trabalho escravo na Amazônia, por exemplo.

Neli de Mello, quando fala da grande contra-reforma agrária, se refere ao incentivo à migração à região Amazônica, em que grandes propriedades foram divididas em terrenos menores, mas paralelamente, sem condições de estrutura e de produção, o que resultou na compra e venda dos mesmos lotes, se concentrando nas mãos de poucos, novamente. O que ocorreu é que muita gente “ganhou” um pedaço de terra, mas não sabia como cuidar desse, e o vendeu para outra pessoa, ou empresa. Muitas dessas pessoas acabaram se tornando trabalhadores escravos desses novos proprietários.

Impunidade e Ganância

Em uma entrevista feita por telefone, o coordenador da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, afirmou que o trabalho escravo contemporâneo não surge somente com a “grande contra-reforma agrária” na Amazônia. Segundo ele, existem muitas nuances entre trabalho escravo e exploração e nesse meio há questões como trabalhos insalubres, precários, mas que estão dentro da legalidade. Para Sakamoto “a forma como o governo ocupou a Amazônia contribuiu para o fortalecimento da exploração dos trabalhadores, que se transformaram em mão-de-obra para empreendimentos agropecuários”, disse. O coordenador da Repórter Brasil acredita que as principais dificuldades para combater o trabalho escravo, tanto o rural quanto o urbano, se sustentam em três pilares: impunidade, ganância e pobreza. Sendo que o último não se refere só a renda, mas à falta de garantia por parte do Estado em assistir a população que mais necessita.

Para a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Amazonas, Francisneide Lourenço, a falta de informação sobre os direitos trabalhistas é a maior dificuldade para combater a prática de trabalho escravo entre os ribeirinhos. “Muitos sempre viveram desta forma há anos e acham que é normal esta situação”. Segundo a coordenadora, na maior parte dos casos ocorre venda de produtos essenciais pelo patrão em troca dos serviços ou produção. “Temos exemplos na produção de juta, em que os trabalhadores eram obrigados a comprar alimentos dos patrões a preços exorbitantes e vender o quilo da juta a um preço muito baixo. Desta forma, o trabalhador fica sempre devendo aos patrões”, explicou Francisneide.

Libertados

No ano de 2011, a CPT registrou 63 pessoas que foram libertadas de trabalho escravo no Amazonas, sendo que 59 dessas libertações ocorreram no interior do estado e envolveram o trabalho realizado nas áreas de pecuária e lavoura.

Uma das grandes mentiras que se ouve a respeito de trabalho escravo é que esse não se diferencia quando é urbano ou rural. Porém, segundo dados da Polícia Federal, delegacias regionais do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Federal, o trabalho urbano ocorre em menor escala se comparado ao meio rural, uma vez que essas instituições já agem sobre o problema.

A escravidão urbana se diferencia da escravidão rural por diversos motivos, principalmente por causa de sua natureza. O principal caso de escravidão urbana no Brasil é a dos imigrantes ilegais latino-americanos – com maior incidência para os bolivianos – nas oficinas de costura da região metropolitana de São Paulo. A solução passa pela regularização da situação desses imigrantes e a descriminalização de seu trabalho no Brasil. Já no meio rural, como foi citado acima, o principais casos de escravidão se encontram nas lavouras e na pecuária.

Definição

Há também outra discussão bastante presente quando se fala em trabalho escravo, seja rural ou urbano, que é a definição do próprio termo. Tramita o Projeto de Lei (PL-3842/2012) que altera a definição do que seria trabalho escravo no Código Penal, tornando-o mais restrito. A proposta é do deputado federal e líder da Frente Parlamentar da Agropecuária, Moreira Mendes (PPS-RO), e pretende acabar com a insegurança de que os parlamentares reclamam. Para Mendes “os órgãos de fiscalização e repressão do Estado não dispõem de referenciais claros para pautar suas autuações e investigações”. Por isso, o texto exclui duas condutas, referentes à jornada exaustiva e às condições degradantes de trabalho, da lei 10.083, que regula o trabalho escravo no Código Penal. Segundo o deputado, as condutas “discrepam da tradicional conceituação de trabalho análogo à de escravo, entendido pela legislação brasileira” e são a causa da insegurança jurídica e do baixo índice de condenação dos empregadores.

Voltando à questão do trabalho escravo na região amazônica, um estudo do Greenpeace constatou que a cadeia de produção do ferro na região inclui desmatamento, trabalho escravo e desrespeito a povos indígenas. E gigantes como Ford, General Motors, Nissan, Mercedes, BMW e a produtora de equipamentos agrícolas John Deere teriam participação indireta nessas irregularidades. Cerca de 80% de todo o ferro gusa ligado à devastação da região são exportados para os Estados Unidos para abastecer essas marcas. A matéria-prima é extraída em Carajás, no Pará, e também no Amazonas e Tocantins. A região se tornou um polo de produção de ferro a partir da década de 1980 e de lá para cá mais de 40 altos fornos se instalaram por lá, operados por 18 empresas guseiras (que transformam o minério em ferro-gusa, matéria-prima para a produção de aço). A demanda por carvão para alimentar os altos fornos deu origem a inúmeras carvoarias.

O uso de mão de obra escrava em carvoarias isoladas no meio da mata é, segundo a Comissão Pastoral da Terra, de conhecimento das autoridades: entre 2003 e 2011, foram libertados mais de 2.700 trabalhadores em situação degradante. Na visão de Leonardo Sakamoto, “o capitalismo reinventa as formas antigas da exploração”. Ele ainda acredita que é possível diminuir o trabalho escravo de maneira bastante forte, uma vez que o “problema não é sistêmico, mas sim fruto da nossa linha de desenvolvimento. É preciso que haja mudanças em nossa forma de produção”, concluiu Sakamoto.

Marianne Bufalo é estudante de jornalismo e participa do Projeto Repórter do Futuro, da Oboré Projetos Especiais de Comunicação e Artes em parceria com o Instituto de Estudos Avançados da USP e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)

 

 

 

Fonte: Caros Amigos

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