Vozes sem paz no Alemão

Vivendo sob tiroteios constantes e já com 21 mortos este ano, Complexo do Alemão organiza protesto para pedir paz. Especialistas em segurança admitem que o melhor para o conjunto de favelas é um recuo da polícia.

Por ISABELA FRAGA, do VozeRio

Com pelo menos três instalações policiais dentro ou ao lado de espaços dedicados a atividades infantis, o Complexo do Alemão tem passado por dias, meses e semanas de cão, afirmaram moradores ao Vozerio. Apenas este ano, morreram pelo menos 21 pessoas, segundo levantamento do portal Voz das Comunidades: quase três vezes mais do que o 2014 inteiro, quando morreram oito pessoas em decorrência de conflitos policiais, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). A situação é tal que o Coletivo Papo Reto programou uma caminhada na região para a manhã de hoje (22/8), com o objetivo de chamar atenção para a situação e dizer #TáTudoErrado.

O agravamento cíclico da violência tem levado integrantes da academia e das próprias forças de segurança a questionar a presença da UPP no Alemão. Em entrevista ao jornal O Dia, o coronel Íbis Silva, ex-comandante da PM, admitiu que a UPP no Complexo fracassou e que a ocupação deve ser repensada. Para a socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o quadro do Complexo hoje é de iminência de tragédia. “O projeto de segurança entrou numa sinuca de bico dentro do Alemão”, avalia Silvia. “A impressão que se tem é a de que não há saída dentro do programa de UPP”, afirma.

“Faz mais de uma semana que tenho cancelado as aulas noturnas do ensino médio e as aulas de futebol”, conta Lucia Cabral, fundadora e coordenadora do Espaço Democrático De União, Convivência, Aprendizagem E Prevenção (Educap). Segundo Lucia, desde que a Polícia Militar instalou uma cabine em frente ao campo de futebol do Campo do Sargento, os tiroteios são quase diários. “Imagina uma aula de física e química aqui dentro e do nada começa o desespero”, descreve ela, apontando para fórmulas químicas no quadro branco da sala. O Educap funciona dentro de um contêiner na rua Canitar, onde se tem ouvido tiros com frequência — sobretudo na parte da manhã e mais à noite, quando os moradores estão voltando do trabalho e da escola. No momento da entrevista com Lucia, por volta das 11h30 de quinta-feira, o Vozerio ouviu um tiro de fuzil.

Fachada da escola em Nova Brasília, repleta de marcas de tiros. PM diz que já tem novo lugar para instalar UPP (foto: Isabela Fraga)
Fachada da escola em Nova Brasília, repleta de marcas de tiros. PM diz que já tem novo lugar para instalar UPP (foto: Isabela Fraga)

Além da cabine da PM ao lado do campo de futebol, o Alemão ainda abriga uma base blindada na localidade conhecida como Inferno Verde, perto de outro campo de futebol, e um contêiner da UPP dentro da escola estadual Caic Theóphilo de Souza Pinto, na Nova Brasília. O resultado está evidente na fachada do edifício escolar, onde se vê diversas marcas de tiro.

A história da UPP dentro da escola é conhecida desde meados de 2014, quando o jornal O Dia publicou uma foto da fachada. “Meu filho estuda nessa escola. Antes da UPP ali, na sala dele tinham 40 alunos. Agora, só têm 12”, conta a artista plástica Mariluce Mariá Souza, moradora do Complexo. O número de alunos matriculados caiu pela metade, segundo a Secretaria de Educação.

A promessa de remover o contêiner da UPP do território da escola foi feita já em abril pelo coronel Robson Rodrigues, chefe do Estado Maior da PM, durante o encontro ’Alemão: caminhos para a crise’, realizado pelo Dia e pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) e que reuniu mais de 200 pessoas — entre representantes do poder público e moradores do Alemão. Na ocasião, apenas alguns dias após o assassinato de Eduardo,muitos desabafos foram ouvidos e muitas propostas foram feitas. “Mas [a situação] só piorou”, avalia Mariluce. No encontro de abril, ela confrontou o subsecretário de segurança de Segurança, Pehkx Jones Gomes da Silva, quando este começou uma fala protocolar, e a fala ficou gravada. “Em vez de a polícia repensar a estratégia que matou o Eduardo, ela ampliou esse modelo”, afirma a moradora do Alemão.

Para Silvia Ramos, o período de conversas e redução nos conflitos que se seguiu à morte do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos — o “luto”, nas palavras de Mariluce —, deu lugar a um contexto de tensão insustentável. De 2012 (quando foram instaladas as quatro UPPs do Alemão) até 2014, o número de mortes diminuiu. A situação mudou em 2015. “Está óbvio que é preciso rediscutir a política de segurança do Alemão. Não há razão para se manter policiais lá dentro. A PM deveria sair, ficar do lado de fora, numa ação de redução de danos, tanto para moradores quanto para policiais”, afirma a socióloga.

Embora reconheça que a situação no Alemão é bastante instável e delicada, o coronel Robson Rodrigues, chefe do Estado Maior da PM, nega retirada das forças policiais. “A UPP não pretende recuar, pois tivemos muitos avanços”, declarou ao Vozerio. Segundo ele, os comandantes das UPPs do Alemão têm recebido meios para diminuir a gravidade da situação. “A situação é crítica, o território é instável. Mas, se recuarmos, vamos voltar à situação anterior, antes de 2010 [ocupação do Alemão pelo Exército].”

“Não tem mais como saber onde vai ter tiroteio”
Segundo as lideranças entrevistadas pelo Vozerio, a diferença da situação atual do Alemão para cerca de dois meses atrás é a proliferação dos tiroteios. “Está ficando cada vez mais banal”, conta Marcos Valério Alves — o Marquinho Pepé —, presidente da associação do morro das Palmeiras. “As Palmeiras ainda são um lugar relativamente pacífico”, afirma Marcos. Diferente da Fazendinha, Nova Brasília e Grota, onde os conflitos são mais intensos e frequentes.

No entanto, enquanto antes era possível evitar os locais mais perigosos, agora os confrontos armados acontecem em novos lugares. “Desde que instalaram essa cabine da PM aqui em frente, a coisa piorou muito”, conta Lucia Cabral, referindo-se à cabine na rua Canitar, ao lado do Campo do Sargentol. Um empresário local contou à reportagem que precisou fechar a loja de doces que mantinha na rua, por causa da insegurança.

Segundo Mariluce, Marcos e Lucia, os tiroteios têm acontecido em horários orquestrados — sempre pela manhã cedo; no horário da saída da escola; e à noite. “A gente entende que o estado jamais vai tirar a UPP daqui… Ao menos antes de 2016”, provoca Mariluce. “Nosso pedido é apenas que parem com os tiroteios.”

Para Lucia e Marcos, contudo, o recuo da UPP seria a resposta mais efetiva. “A UPP deveria deixar a população em paz. Eles têm que dar o braço a torcer. Alguém tem que recuar, reconhecer que é preciso dar uma trégua, porque isto aqui está uma guerra”, afirma Lucia, sem economizar nas metáforas para explicar sua visão. “Quando você destrói o formigueiro, destrói a casa da formiga. E elas ficam perdidas, dando ferroadas.”

A artista plástica Mariluce Mariá de Souza no encontro de abril: após período sem tiroteios, situação piorou (foto: Fernando Souza/Agência O Dia)
A artista plástica Mariluce Mariá de Souza no encontro de abril: após período sem tiroteios, situação piorou (foto: Fernando Souza/Agência O Dia)

Balanço de promessas
Em abril, o Vozerio apoiou a realização do encontro ’Alemão: caminhos para a crise’, realizado pelo Dia, o Instituto de Estudos da Religião (Iser) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Na época, o diálogo franco e muitas vezes tenso entre autoridades e moradores deixou no ar a expectativa de mudanças no local. Esta semana, procuramos procurou Mariluce, Lucia Cabral, presidentes de associações de moradores e outros participantes da reunião para saber o que mudou desde então. Compilamos abaixo algumas das promessas feitas no forum e verificamos em que pé estão.

Promessa: Remover o contêiner da UPP que fica dentro do terreno da escola Caic Theophilo de Souza Pinto, em Nova Brasília.
Quem: Polícia Militar, na figura do coronel Robson Rodrigues
Foi feito? Não
Resposta do coronel Robson: Já há opções de espaços alternativos para essa UPP — o Largo do Terço e Praça do Conhecimento. “Estou esperando a equipe me apresentar um projeto mais específico para eu conversar com a Secretaria de Segurança. É prioridade do Estado Maior.”

Promessa: Criar um fórum de discussão permanente no Alemão
Quem: Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social, na figura da secretária Teresa Cosentino
Foi feito? Mais ou menos. “A secretaria fez uma reunião muito mal-ajambrada, quando fizemos nossas reivindicações, mas as reuniões seguintes foram sendo adiadas”, conta Alan Brum, coordenador do Instituto Raízes em Movimento.
Resposta da secretaria: Andrea Sepúlveda, subsecretária de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, afirmou que foram realizadas duas reuniões: uma no dia 15/5, quando foram levantadas as demandas das comunidades; e outra, com quórum mais baixo, no dia 24/6. “Esta segunda reunião foi adiada uma vez e, quando aconteceu, recebeu poucas pessoas do Alemão”, relembra Andrea. Segundo a subsecretária, outros encontros estão previstos, mas ainda sem data. “Nossa proposta ainda é a de haver esse forum permanente” , reforça Andrea. “Estamos à disposicão para qualquer demanda da comunidade.”

Promessa: Acelerar processo de doação de terreno para construção de um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ) dentro do Complexo do Alemão.
Quem: Secretaria Municipal de Assistência Social, na figura do subprefeito Adilson Pires.
Foi feito? Sim. No dia 13 de abril, a prefeitura disponibilizou três terrenos para a construção do campus. Procurado pelo Vozerio à época, Adilson confirmou que o processo já estava acontecendo, mas que pediu ao prefeito para acelerá-lo.

Velhos problemas, novas promessas
Das 57 pessoas baleadas no Alemão este ano, segundo o portal Voz das Comunidades, 21 morreram. Uma mulher foi atingida no braço na última quarta-feira. Em meio ao agravamento da violência, os moradores estão descrentes de qualquer atuação do poder público. “Nem sei qual vai ser o resultado disso”, disse Mariluce Mariá, referindo-se à manifestação de hoje. “[A situação] só piora.”

Para Marcos Valerio, a Defensoria Pública é uma exceção, pois estaria montando núcleos no Alemão. “Mas o governo não tem feito nada”, declara.

Segundo a subsecretária de Direitos Humanos, Andrea Sepúlveda, o papel de sua secretaria é articular as ações das outras secretarias com as demandas dos moradores. Ela disse ao Vozerio que entregou essas demandas do Alemão aos respectivos órgãos, e tem recebido respostas. “A Secretaria de Trabalho e Renda vai criar uma Casa de Direitos dentro do Alemão e em outras comunidades com UPP”, anunciou ela, referindo-se ao modelo bem-sucedido já implantado na Cidade de Deus onde moradores podem, por exemplo, tirar carteira de identidade, casamento e regularizar outros documentos. “O Centro de Referência da Juventude também disse que vai reiniciar as atividades na Vila Olímpica do Alemão”, conta a subsecretária.

Por parte da PM, além da retirada da UPP da escola em Nova Brasília, o coronel Robson afirmou que a instituição tem realizado treinamento dos policiais para que sejam menos suscetíveis a reações emocionais. Sobre as instalações policiais próximas de campos de futebol e espaços de lazer, Rodrigues foi taxativo: “Tudo isso está sendo reavaliado”.

Em nota, a Secretaria de Segurança afirmou que “começa a funcionar esse ano o Centro de Ensino da Coordenadoria da Polícia Pacificadora (CPP), no Complexo do Alemão”. Com custo de cerca de R$ 400 mil, o espaço terá cursos “voltados para a otimização do serviço policial em comunidades com UPPs.”

Sobre esse ponto, os moradores parecem descrentes. “A relação da polícia com o morador não parece ter mais jeito”, sentencia Lucia Cabral.

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