Ice Blue: “Eu sou alvo de racismo todos os dias”

Em entrevista exclusiva, o rapper, que é um dos quatro integrantes do Racionais MCs, fala sobre rap, os 25 anos do grupo, periferia e movimento negro. “A posição dos negros, hoje, em relação ao racismo é o choro”

Por Igor Carvalho

No último sábado (26), cinco mil pessoas se apinharam no Clube Recreativo Sorocaba, interior de São Paulo, onde o Racionais MCs, maior grupo de rap do Brasil, se apresentou pela segunda vez na turnê que celebra seus 25 anos de carreira.

Espalhadas pelo espaço, pessoas de gerações distintas. Boa parte dessa massa, é formada por jovens que talvez nem fosse nascidos quando Ice Blue, Mano Brown, KL Jay e Edi Rock lançaram o revolucionário disco “Holocausto Urbano”, em  1990.

A constante renovação do público do Racionais, ao passo em que se mantém como símbolo maior de resistência e de referência cultural para os que acompanharam o início da trajetória do grupo, se deve ao combate que o grupo faz a um sistema viciado, que há décadas teima em repetir, nas periferias, a mesma lógica de opressão, segregação e morticínio de pobres e negros.

Porém, 25 anos depois, Ice Blue, em entrevista exclusiva ao SPressoSP, afirma que o grupo não vê sentido em se portar da mesma forma. “Nós falamos das mesmas coisas, porém, não adianta querer me ver hoje como me via em 1998, ou 1989.”

Durante a entrevista, Blue chamou a atenção para a maturidade do grupo e os avanços profissionais que conquistaram. O surgimento da Boogie Naipe, bem como o trabalho da assessora de imprensa Ana Paula Alcântara, deixaram o grupo mais acessível ao público e livre apenas para o rap.

“Hoje, nossa produtora cuida do meu imposto de renda, do plano de saúde dos meus filhos e dos meus débitos. Então, eu tenho tempo para cuidar da minha música, de ser mais responsável com isso. Eu posso acordar de manhã, abrir o olho e pensar: ‘Vou na academia e depois vou passar o dia fazendo música’. Hoje eu posso”, afirma Blue.

Ainda em 2014, o Racionais lançará um disco com músicas inéditas, após doze anos. Segundo Blue, o hiato foi fundamental para o amadurecimento dos quatro integrantes. “O Brown tem um disco pra sair, eu tenho um com o Helião (RZO), o Edi Rock soltou o dele já, e o KL Jay está produzindo a mixtape dele. Quer dizer, todo mundo fez seu corre, todo mundo se virou sozinho nesse tempo. Agora, cada um trouxe pra dentro do grupo outras ideias, que aprendeu fora, nos trabalhos paralelos, que exigem mais responsabilidade.”

“Eu acho ruim sem cotas, mas também não sou a favor. Ela é separatista também. Continuam nos separando, cara” (Foto: Klaus Mitteldorf)
“Eu acho ruim sem cotas, mas também não sou a favor. Ela é separatista também. Continuam nos separando, cara” (Foto: Klaus Mitteldorf)

Confira, na íntegra, a entrevista com Ice Blue:

SPressoSP – Blue, quando você pensa lá atrás, consegue lembrar quais eram as pretensões do Ice Blue que montou o B.B.Boys junto com seu primo, o Mano Brown?
Ice Blue – Eu só queria fazer música, mano. Queria fazer aquela música que tinha acabado de me contagiar. Eu tinha visto o Thaíde e o MC Jack cantando, frequentava a São Bento, eu era parte dessa tribo já. O rap estava me consumindo, só pensava nisso e queria, de alguma forma, contribuir com essa cena que eu já era parte. Mas assim, não tinha ideia de onde isso iria, do que faríamos, só queria fazer rap mesmo, o compromisso era com a música.

SPressoSP – Foi na São Bento que você conheceu o KL Jay e o Edi Rock?
Ice Blue –Sim, eles eram frequentadores da São Bento também. O Brown ainda chegou a fazer uns trabalhos com o KL Jay, só os dois. Eu mesmo conheci o KL Jay antes, troquei umas ideias e só depois ele me apresentou o Edi Rock. Mas ali na São Bento era assim, o pessoal se encontrava para dançar e ouvir música. Isso é uma coisa que o pessoal não sabe, mas para ouvir uma boa música, naquela época, era difícil, tinha que saber quem tinha o disco e onde o cara ia tocar. Hoje em dia, você só abre a internet e escuta qualquer coisa.

SPressoSP – Quando vocês participam do “Consciência Black – Volume I”, ali já era Racionais?
Ice Blue – Ali já era Racionais, já tinha a reunião. Tem essa confusão porque na capa do disco o Edi Rock e o KL Jay estão em uma outra foto, mas era Racionais. Naquela época, a gente usava o mesmo DJ, mas não fazia show no mesmo palco, aí veio a ideia de juntar todo mundo no mesmo palco. Não era algo programado, foi natural.

SPressoSP – Em 1990, o “Holocausto urbano” provoca uma revolução no rap, que passa a ser ferramenta de resistência e enfrentamento, inclusive provocando um racha no movimento. Tem a história do pessoal que era da São Bento e migra para a Roosevelt, onde começam as posses. Vocês compreendem essa importância do disco para o rap?
Ice Blue – Teve tudo isso sim. Todo mundos sempre diz isso, da importância do disco, mas o Racionais foi um contribuinte. Para o grupo, o que mudou mesmo a partir dali foi a possibilidade de sobreviver através da música e isso permitia que a gente se dedicasse mais à música. Mas eu só nos vejo como um contribuinte, o Thaíde já tinha feito coisas nessa linha. O “Holocausto urbano” era o que estava acontecendo na rua naquele momento, era algo que a gente precisava contar, estávamos vivendo isso, as pessoas estavam nos relatando isso. Muita gente começou a achar que a fórmula do sucesso era fazer cara feia e falar de política. Nessa, muitas pessoas ficaram presas pelo caminho. O Racionais nunca trabalhou com fórmulas: “Ah, vamos fazer isso aqui que vai fazer sucesso”, não tem isso. Naquela época, começamos a fazer músicas que eram totalmente fora de padrão, músicas com sete ou oito minutos, quando as rádios só executavam as músicas com três ou quatro minutos, fora da fórmula, mano. Foi um risco, mas estávamos fazendo música.

SPressoSP – O disco seguinte, o “Escolha seu caminho”, vocês já trazem uma mensagem casada na capa e contra-capa do disco. De um lado, seguram armas. Do outro, livros. Se no “Holocausto Urbano” vocês apontam o inimigo, no “Escolha seu caminho” vocês estavam tentando alertar para as escolhas erradas?
Ice Blue – Era isso, e estava precisando desse choque, mano. Em São Paulo, os negros eram muito oprimidos na cidade, nos anos 80 e 90. A gente andava cabisbaixo, com vergonha de dizer onde morava, de assumir nossa cor, nosso cabelo, querendo provar para os outros uma condição que não era nossa, tá ligado? A gente tem que assumir que somos pretos mesmo, que moramos na favela sim, que nosso cabelo é crespo e que o lugar de onde eu venho tem muita coisa boa. O Racionais, nesse disco, veio muito nessa tese, de que você tem as escolhas e você pode sim assumir tuas origens, assumir tua trança, não precisa dizer que mora na rua de cima, sendo que mora na favela. Naquele momento, precisava dar um sentimento de valorização, de resgate da confiança, e isso vinha através do conhecimento. Pô, era terrível, você era perseguido no shopping por ser negro, não que tenha mudado muito, mas assim, passamos isso na pele mesmo, sabe? Eu era mais escuro e o Brown um preto mais claro e a gente já saía de casa na posição do enquadro, porque estávamos acostumados, eram 5 ou 6 enquadros, certeza.

SPressoSP – O “Sobrevivendo no inferno” vende 1,5 milhões de cópias sem suporte das grandes gravadoras. Um dos legados desse disco foi mostrar que o rap poderia sobreviver sem a indústria fonográfica?
Ice Blue – O Racionais sempre teve a mentalidade de ser independente. Pela proposta musical e ideológica, não tinha como ser diferente. Se a gente se entrega, mano, ia sofrer muita pressão das gravadoras para mudar nosso discurso e isso não se vende. O caminho foi mais difícil? Foi. Mas estamos aí, independentes e falando do que queremos. Fizemos uma gravadora de preto crescer, mano. Tivemos propostas de contratos milionários, de gravadoras grandes, mas recusamos mesmo, ideologia não se vende, nosso compromisso sempre foi maior que isso.

SPressoSP – “Nada como um dia após o outro” é o melhor disco do Racionais?
Ice Blue – Difícil. Vamos dizer assim, ele é o mais “rua”. É um disco mais próximo da linguagem da rua. Até nós tínhamos esse sentimento, nos outros discos, que tínhamos que mostrar conhecimento da língua portuguesa. No “Nada como um dia…” tem uma coisa louca: A gente estava fazendo show do “Sobrevivendo no inferno”, aí um dia fizemos uma reunião no camarim, estava todo mundo cansado e falamos: “Mano, isso aqui não é mais o que queremos dizer. Quantos shows tem? Tanto. Vamos fazer os shows vendidos e vamos parar por tempo indeterminado, quem tem dinheiro, tem. Quem não tem, corre atrás”. Foi assim, porque a gente precisava ficar mais próximo das nossas origens. Nesse tempo, a gente viveu mais a várzea, mais os amigos de quebrada, mais os bares da quebrada, até passava a ponte, mas era só pra algum compromisso profissional e voltava. Sete anos depois, saiu um disco mais gangsta, menos politizado, com ideias retas e diretas, com objetivos claro. Se você pensar, foi um disco que as pessoas demoraram uns três anos para entender. O “Nada como um dia após o outro” foi pensado para ser dois discos mesmo, uma gravadora ia cortar no meio e lançar só um, mas uma obra não se desfaz, nós pensamos o disco como uma obra.

SPressoSP – Vocês sempre disseram, depois do “Nada como um dia após o outro”, que não seria por pressão que o novo disco ia sair. Por que está saindo agora?
Ice Blue – O “Nada como um dia…” nos fez amadurecer muito como pessoas, quando voltamos mais para nossa gente, nossa quebrada. De lá pra cá, aconteceu outra parada, amadurecemos como músicos. O Brown tem um disco pra sair, eu tenho um com o Helião (RZO), o Edi Rock soltou o dele já, e o KL Jay está produzindo a mixtape dele. Quer dizer, todo mundo fez seu corre, todo mundo se virou sozinho nesse tempo. Agora, cada um trouxe pra dentro do grupo outras ideias, que aprendeu fora, nos trabalhos paralelos, que exigem mais responsabilidade. Esses trabalhos paralelos foram importantes pra caralho, porque quando estamos juntos sabemos que um faz pelo outro, mas quando estou sozinho, tenho que me virar. Enquanto um monte de gente falava que estávamos nos separando, a gente estava se fortalecendo.

“Eu tenho uma infância complicada, uma juventude que eu passei muito risco de vida e aí cheguei nos 30. Mano, quando cheguei nos 30 eu olhei pra trás e “Nossa…Cheguei aqui? Agora vou valorizar” (Foto: Klaus Mitteldorf)
“Eu tenho uma infância complicada, uma juventude que eu passei muito risco de vida e aí cheguei nos 30. Mano, quando cheguei nos 30 eu olhei pra trás e “Nossa…Cheguei aqui? Agora vou valorizar” (Foto: Klaus Mitteldorf)

SPressoSP – Agora, com esse encontro de experiências distintas, o que podemos esperar do próximo disco dos Racionais? Do que vocês vão falar?
Ice Blue – Da evolução das ideias, as pessoas estão presas. O Racionais falou pra você não ter vergonha de onde você mora, não ter vergonha da sua cor, mas não falou pra você morrer no barraco. Você não tem que ter vergonha disso, mas tem direito de sonhar e buscar sair disso. Querer sair daquela situação, não é negar aquela situação. Nós falamos das mesmas coisas, porém, não adianta querer me ver hoje como me via em 1998, ou 1989. Tudo mudou. Em 2014, o Ice Blue é outra pessoa, não me prendi.

SPressoSP – Vocês montaram uma estrutura nesse hiato de discos. Acabaram de produzir o disco no lendário Quad Studios, em Nova Iorque. Pensam em tentar sucesso fora do país?
Ice Blue – O Racionais também é outra coisa, nesse tempo, né mano? Temos uma produtora montada, que é a mulher do Brown quem cuida, temos uma assessoria de imprensa, que nunca tivemos, temos site, redes sociais, todos do grupo estão nas redes sociais. Hoje, nós temos essa proximidade com os fãs, estamos acessíveis. Mesmo assim, não temos essa pretensão, a gente sempre segurou isso, nunca estivemos prontos pra isso. O Racionais tem isso, a gente sempre se coloca um degrau abaixo daquele que nos colocaram. Mas chega um momento que você precisa se posicionar, precisa saber seu lugar. Hoje, nossa produtora cuida do meu imposto de renda, do plano de saúde dos meus filhos, dos meus débitos, então eu tenho tempo para cuidar da minha música, de ser mais responsável com isso. Eu posso acordar de manhã, abrir o olho e pensar: “Vou na academia e depois vou passar o dia fazendo música”. Hoje eu posso.

SPressoSP – A periferia que você cantava em 1989, mudou muito nesses 25 anos?
Ice Blue – Ela evoluiu. A periferia ganhou voz, mano. A periferia que eu cantei não tinha voz. Minha periferia, hoje, está no Facebook, no Twitter e no Youtube. Estamos comunicados com o mundo. Hoje, não estamos mais oprimidos e largados lá no nosso canto.

SPressoSP – E dentro de casa, melhorou?
Ice Blue – Olha, isso está em cada um buscar uma vida melhor. As pessoas ainda são muito conformadas, esse conformismo ainda existe. As pessoas precisam entender suas necessidades. “Ah, eu ganhei a casa? Está bom”, será? A gente ainda fica nessa de que se você quiser um tênis melhor, é ostentação, se quiser uma corrente mais “pá”, é ostentação. Não é isso. Todo mundo quer ter um carro legal, todo mundo quer ter uma casa, todo mundo quer. Não adianta você ficar negando isso, você também quer.

SPressoSP – Realmente, sempre teve isso de “o Racionais não fala disso”, “o Racionais só fala isso”, “o Racionais não vai ali”. Você demorou muito para se livrar de algumas dessas amarras?
Ice Blue – Eu, do Racionais, fui o cara que logo que percebeu que ia ter uma condição financeira melhor planejou ter, que queria ter, mano. Meu sonho era comprar uma moto 7 Galo, eu falava isso para meus amigos. Eu não comprei uma 7 Galo, eu comprei uma CBR 900 zero. Um dia eu acordei e falei: “Nossa, eu tenho dinheiro”. Fui na loja, entrei, comprei minha CBR zeradinha. No Racionais eu nunca tive essa parada não, eu sempre quis ter e vou continuar querendo ter. Sabe por que? Se eu voltar 25 anos atrás, na minha mente suicida, eu ia fazer alguma merda para ter alguma coisa. Ou seja, se agora que eu tenho o direito de ter eu não vou ter? Eu estou livre, cara, eu estou trabalhando para ter minha moto.

“‘Ah, o funk cantou putaria’. Tá, mas e o Tchan? “Vai descendo na boquinha da garrafa”. Ó que legal, balançava a bunda todo domingo no Gugu, no Faustão e em todos os canais. Por que o funk sofre discriminação? Porque é movimento de favela” (Foto: Klaus Mitteldorf)
“‘Ah, o funk cantou putaria’. Tá, mas e o Tchan? “Vai descendo na boquinha da garrafa”. Ó que legal, balançava a bunda todo domingo no Gugu, no Faustão e em todos os canais. Por que o funk sofre discriminação? Porque é movimento de favela”
(Foto: Klaus Mitteldorf)

SPressoSP – Blue, é difícil imaginar qualquer coisa que dure 25 anos, hoje. Banda de rock, grupo de rap, casamento, empresa, enfim… Em algum momento o Racionais esteve ameaçado? Correu o risco de acabar?
Ice Blue – O Racionais é turbulento desde o início. Se não fosse para deixar de existir, seria logo do começo. Somos quatro caras de personalidade muito fortes, mas ao mesmo tempo com estilos que se completam. Tem o cara que apazigua, o outro que é consciente financeiro, o outro é mais “pá”, chega junto, e o outro que fica mais olhando. Eu nunca tive o sentimento de que iria acabar, sempre tivemos crise, mas é porque a gente sempre se questiona: As músicas que vamos cantar no show, o repertório do disco, os lugares que vamos tocar, mas nunca por causa de dinheiro. Nossas discussões são sempre por causa de música, são várias tretas mesmo (risos).

SPressoSP – O Hip Hop é o maior movimento do país?
Ice Blue – Talvez seja o segundo. O Hip Hop é um movimento enorme, mas que ainda não se descobriu porque ainda é preso em ideologias separatistas. Por exemplo, tem os caras que querem separar o Hip Hop do funk, dizer que um é melhor que o outro. “Ah, o funk cantou putaria”. Tá, mas e o Tchan? “Vai descendo na boquinha da garrafa”. Ó que legal, balançava a bunda todo domingo no Gugu, no Faustão e em todos os canais. Por que o funk sofre discriminação? Porque é movimento de favela. Então, são coisas que o movimento deveria questionar. Mas não, o próprio cara do rap não enxerga no moleque do funk mais um MC.

SPressoSP – Qual o primeiro movimento do país, então?
Ice Blue – Para mim, o primeiro é aquele que não se une, não se organiza, é o movimento negro. Eu fico vendo, nós negros somos 70% da população de São Paulo, mas nossas passeatas não tem 10 mil pessoas.

SPressoSP – Você viu a periferia ou os negros nas manifestações de junho do ano passado?
Ice Blue – É isso. O ponto “x” é esse. Não estava a periferia e nem os negros, que tem muito para reivindicar. A posição dos negros, hoje, em relação ao racismo é o choro: “Ah, eu fui chamado de macaco” (imitando choro). Tem que processar, tem que ir pra cima, em certos momentos tem que descer a porrada mesmo, porque a rua é isso. Olha o Tinga e outros jogadores que ganham milhões, o que fazem? “Ah, me chamaram de macaco” (imitando choro). Não é isso, cara, temos que mudar de posição. O discurso é outro, o discurso da cartilha pronta do “sou favelado e preto” já passou. Agora, temos que ser afirmativos e mostrar que somos conhecedores dos nossos direitos. Um argentino desrespeitou um jornalista negro lá no Rio de Janeiro, imitando um macaco. O que tinha que ser aquilo? Pancada neles, cara. “Ah, o Blue está incitando a violência”. Sempre querem distorcer o centro da história, não é a porrada, é o racismo.

SPressoSP – Você me fez lembrar agora do “Mil faces de um homem leal”, que homenageia o Marighella. Você pegaria em armas contra o racismo?
Ice Blue – Com certeza. Se o movimento negro fosse organizado, eu pegaria. Aliás, como já peguei em arma pelo movimento negro. Na década de 90, tinha uma onda de Skinhead em São Paulo, e você tinha que sair armado mesmo. O movimento negro tem que evoluir cara, não tem que ter dez passeatas, uma de cada líder, tem que ser uma e todo mundo correndo junto. Não precisa falar 20 caras, um fala. Tem que deixar de ser chato, com aqueles discursos velhos. Tem que ser direto, se não os meninos saem fora, os moleques estão querendo outra coisa. Por isso, eles escutam o rap e não o movimento.

SPressoSP – É ano eleitoral, Blue. Como você se posiciona politicamente?
Ice Blue – Eu sou de esquerda. Porém, mano, eu não acredito mais em partidos. Eu olho a política procurando pessoas.

SPressoSP – Quem anda convencendo você?
Ice Blue – Pra falar a verdade, ninguém. Está difícil. Mas tudo está começando, preciso me posicionar e vou me posicionar. Mas olha, essa era a hora, tinha que ter passeata objetiva, cobrar dos caras mesmo. Se não, fica essas manifestações que ninguém sabe o que é. Contra a Copa do Mundo? É isso que você quer? É isso que o favelado quer? O preto quer ficar sem a Copa do Mundo? Queremos o quê? Universidade?

SPressoSP – Você é a favor das cotas?
Ice Blue – Eu acho ruim sem cotas, mas também não sou a favor. Ela é separatista também. Continuam nos separando, cara. Muitos negros tem vergonha, mano. E o orgulho? Vou dizer que precisei de cotas? Mais uma vez nos colocamos numa posição de coitadinho. Mas temos o direito.

SPressoSP – Blue, até pela condição financeira que você nos falou aqui, hoje você frequenta lugares em que não há muitos negros. Você, apesar de ser o Ice Blue, ainda é alvo de racismo?
Ice Blue – Eu sou alvo de racismo todos os dias. Quando eu percebi que estava frequentando lugares que não tinham negros, como restaurantes e hotéis, eu vi que estava um negro padrão, o negro que os caras querem, com a camisa legal, cabelo cortadinho e falando baixinho. Aí, decidi assumir que sou rastafári. O dread cresceu, as tatuagens apareceram e me visto como negro. Eu chego no Rubayar, peço me almoço e os caras tem que me servir, pode olhar torto, mas tem que me servir. Meu dinheiro é igual ao deles. Vou pagar minha conta, levantar e sair fora. O cara gostou de me servir? Não? Problema dele.

SPressoSP – Vocês vão liberar o disco para download?
Ice Blue – O disco comemorativo dos 25 anos sai esse ano, mas quando a gente se junto começou a surgir tanta música que estamos pensando em lançar um segundo disco, quem sabe no ano que vem.

SPressoSP – Você falava de segmentação no rap. Um discurso muito comum é aquele que tenta dividir o rap em nova e velha geração. Essa nova, que inclusive cresceu escutando vocês. O que acha disso?
Ice Blue – É o que eu falo para os caras. Nós incentivamos os negros a fazer faculdades, a ser negro, a conquistas e o cara ainda virou rapper. Olha que daora. Um desses caras foi o Emicida, foi o Kamau. Eles ouviam Racionais e conseguiram ser um negro diferente, e ainda fizeram música. “Ah, mas os caras não vão cantar os problemas que o Racionais canta”. Pô, mas o cara não viveu isso. A vida dele é outra, a rua dele é diferente da nossa, os amigos são outros. É diferente, mano. Nós não tivemos pai, as mães sofrendo e a fome batendo. Eu sempre falo para os meus filhos: “Não cobra de mim ser um bom pai porque eu não tive pai”.

SPressoSP – O rap é acusado de ser machista. Vocês pensam sobre isso?
Ice Blue – A sociedade é machista, não é o rap. O rap só relata esse fato.

SPressoSP – Te cansa ser referencia? É uma responsabilidade que satura você?
Ice Blue – Eu não sou preso nisso, nem me preocupo em ser referencia para ninguém. Eu sei que sou um cara que não pode fazer qualquer coisa que vai virar manchete, mas não tenho que ser referencia pra ninguém. Eu tenho uma infância complicada, uma juventude que eu passei muito risco de vida e aí cheguei nos 30. Mano, quando cheguei nos 30 eu olhei pra trás e “Nossa…Cheguei aqui? Agora vou valorizar” (risos). E quando cheguei nos 40? Meu, sobrevivi? Agora não quero morrer mais. Agora quero ficar vivo muito tempo, sem ficar amarrado com isso de referencia. Passei muita coisa na vida, não sei se quero me preocupar com isso agora, eu tenho uma vida para aproveitar agora.

Foto de capa: Klaus Mitteldorf

Fonte: Spressosp

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