Papo de academia: Lattes que eu tô passando

Texto de Talita Rodrigues da Silva.

Essa semana, um papo proeminente nas rodas é o tal projeto de mestrado que objetiva discutir a representação feminina através do funk carioca. Antes de a pesquisa começar, já chegamos a uma conclusão, está difícil reconhecer nossos privilégios, mesmo quando estamos na intersecção dos grupos que lutam para aplacá-los, na versão “ninguém tasca na produção tradicionalmente elitista do conhecimento”:

Como querem levar para o ambiente acadêmico uma cultura de periferia, que, aliás, está sendo perseguida? Como ousam falar sobre mulheres que usam palavras de baixo calão em suas letras e que dizem que sua sexualidade também representa poder? E o que elas têm a ver com o nosso feminismo tão bem consolidado em linhas teóricas (muitas vezes, racistas, cissexistas, etc.)?

Mariana Gomes

Pois é, isso tudo é o que precisa ser discutido sem pré-conceitos e de modo integrativo. E, o simples fato de uma mulher poder colocar tais questionamentos em uma universidade, já mostra que nós, feministas, temos feito bem nossa lição de casa. Muito se tem discutido sobre o quanto a produção acadêmica precisa romper os muros da universidade, para que o saber científico possa servir à comunidade que o custeia, ao pensarmos, por exemplo, no modelo institucional mantido no Brasil. Aqui, as universidades responsáveis pelos maiores avanços científicos são públicas. Também se discute, com grande desembaraço, a necessidade de que membros advindos de grupos sociais marginalizados passem a produzir conhecimento. Propriamente no âmbito do feminismo, uma crítica sempre refeita é a urgência de que mais mulheres atuem como sujeitos e recebam notoriedade em áreas científicas, o que, provavelmente, deslocará alguns dos questionamentos a que as pesquisas se propõem. A dissertação em questão será uma boa prova da veracidade dessa hipótese. Particularizando um pouco mais a discussão, é essencial que o próprio feminismo se permita e se pretenda plural dentro da categoria ‘mulher’, conforme tratado aqui:

Enquanto os movimentos feministas não incorporarem a pluralidade legítima das mulheres em sua militância, não estaremos lutando efetivamente pelos direitos das mulheres. Lutar pelos direitos das mulheres negras, indígenas, lésbicas, transgêneros ou transexuais passa por abrir mão de privilégios. Privilégios autenticados pela existência da mulher considerada sujeito de direitos, que é uma mulher branca, heterossexual, de classe média e alfabetizada. Olhar além do contexto privilegiado em que estou dentro de um movimento feminista, que condiciona suas bandeiras há uma mulher padrão que é sujeito de direitos, é um desafio e necessidade fundamental para qualquer mudança efetiva no atual quadro de violações de direitos humanos das mulheres em suas especificidades.

Pois bem, Valesca em sua irreverente Gaiola das Popozudas é essa mulher a quem, muitas vezes, negamos a disputa no feminismo, ainda que a própria afirme-se feminista, em diversos contextos. Nós o negamos a ela, como também a outras mulheres que ocupam espaços tradicionalmente recrutados por machistas e suas expressões sociais, sobretudo se elas advêm de classes baixas e não galga(ra)m posições de proeminentes teóricas. Nessa distensão, podemos nos esquecer de que o feminismo não é uma luta apenas acadêmica, antes labuta diária. Ser feminista envolve, sim, tomar consciência acerca da sociedade patriarcal e seu machismo estrutural, mas é também enfrentar seus produtos no dia-a-dia; e, conforme sabemos, uma atitude não se dissocia da outra. Contudo, a mulher pouco escolarizada nem sempre consegue colocar sua condição de mulher oprimida, não porque sua cultura não o permita, mas porque, muitas vezes, a cultura da elite dominante a apaga, deliberada ou inconscientemente. Por isso, pensar feminismo(s) perpassa pensar outras opressões tão ou mais silenciosas que as do patriarcado.

Dentro da atual estrutura e usando-a, devemos entender que o projeto de mestrado em questão se propõe a fazer essa ponte entre teoria e vivência, corpo, sexualidade e produção intelectual, com a percepção de que não há uma separação entre uma instância e outra. Não se é, por exemplo, uma prostituta e, dissociado disso, uma mulher arguta e consciente de sua opressão. Ao mesmo tempo em que uma mulher é parte da máquina opressora pode (deve) ser também plenamente capaz de interpretar e expor sua condição no mundo. Nosso corpo é um campo de batalha e nós o disputamos física e intelectualmente todos os dias. O funk e suas mulheres são, portanto, objetos e sujeitos dessa sociedade machista, assim como todxs e cada um(a) de nós. Elas disputam um espaço hiper sexualizado, usando seus corpos e também suas vozes e performances. Sobre a consolidação do machismo dentro do funk e sua estruturação de poder, é interessante retomarmos o paralelo já estabelecido aqui:

A exemplo disso, no Funk, temos de um lado MC Catra, o macho alfa pegador de geral e do outro, as mulheres “pegadas”, as cachorras. Virando o disco temos Valeska Popozuda – que canta exatamente as mesmas músicas que Catra, mas que não é considerada a pegadora, é a vagabunda. Homens e mulheres podem desempenhar as mesmas funções, tomar as mesmas atitudes, optar pelas mesmas escolhas, cantar as mesmas músicas, mas lhes são reputados rótulos diferentes.

Mas, se pensarmos sobre quais são algumas das ambições do(s) feminismo(s), perceberemos, facilmente, que é muito empoderador disputar esses espaços e que não é tarefa fácil nem menos útil à causa apoiarmos as mulheres que ousam nesse âmbito, sabendo que, como qualquer outra militante, ela pode não corresponder sempre ao que esperamos de uma feminista prototípica. Há alguns dias, por exemplo, conheci uma expressão musical. Como poderíamos observar, ela incorre em um ou outro discurso que o(s) feminismo(s) vem tentando modificar. Mas quem ousaria dizer que esta não é uma peça com forte teor feminista?

Música “Mulher Guerreira” (Atitude Feminina)

Em todas essas expressões artísticas, escapa ideologias que algumas ópticas feministas recriminariam, mas quem nunca? Militante feminista alguma é 100% coerente com todas as linhas preconizadas pelo(s) feminismo(s), primeiro porque há temas em disputa, o que é excelente para nosso crescimento ideológico, segundo, porque nenhum ser humano corresponde sempre a um paradigma ideal. E, vejamos bem, que até Platão já sabia disso. Mais um ‘porém’, sempre me espanta que a mesma mídia tradicional que torce o nariz para uma auto-declarada feminista como a Valesca não se inibe em divulgar Femen como sendo a expressão das “novas feministas”. Deve ser apenas ignorância, afinal Beauvoir não se encontra em qualquer emissora destilando suas opiniões. Sobre visões tradicionais e mídia, deixo com a palavra Rafucko:

 

Retomando a discussão sobre a personalidade artística da Valesca, é possível entender que ela promove quebras semânticas empoderadoras. Quando canta em parceria com um homem que, sob muitas ópticas, poderia ser considerado machista, o MC Catra, é interessante observar como Valesca conduz a narrativa no sentido de também buscar o seu prazer. Isso rompe com o lugar-comum da pornografiamainstream, onde a satisfação focada é sempre apenas a do homem. Se essa atitude não é ponto ganho para o feminismo, perda também não representa.

Meu abdômen é o poder

Quando a funkeira canta, por exemplo, “late que eu tô passando”, novamente, há uma inversão da lógica machista. O sujeito que recebe a alcunha animal não é mais a mulher, a “cachorra” do funk, é o homem, pois é ele quem deve imitar os trejeitos relativos à outra espécie. Se ressemantizar esse lexema sexista não incorre em prática do feminismo, então as Marchas das Vadias também precisariam ser ideologicamente recriadas.

Em outra música, Valesca canta “eu dô pra quem quiser / que a porra da buceta é minha”. Convenhamos que é preciso ser muito empoderada para ousar dizer isso, que é simultaneamente óbvio e transgressor. Quantas vezes nós, feministas, escrevemos textos e mais textos para concluir que a vagina não é um bem público e que a mulher deve usá-laapenas com quem ela (nós) quiser(mos). Se pensarmos o tanto de tabus e leis que existem ou existiram focando simplesmente na proibição da prática sexual condicionada à satisfação dos desejos da mulher, entenderemos que essa fala não significa pouca valia à nossa luta.

Assim, termino contando que não tenho a vivência da Mariana Gomes, a mestranda mais comentada desta semana, pois nunca fui a um baile funk. Não é o tipo de música com o qual tenha familiaridade, mas entendo que não fazer parte do meu universo cultural não significa que algo seja melhor ou pior, é apenas o meu diferente. Não querer/ter disponibilidade de participar desse espaço é aceitável. Negar que ele esteja sendo disputado por mulheres pensantes e tão vítimas do patriarcado quanto qualquer um(a) de nós é recortar o feminismo, e isso não é teórica nem socialmente possível.

 

 

 


Talita R da Silva

Linguista apaixonada/inebriada/devotada. Viciada em literaturas e debates filosóficos/antropológicos/sociológicos. Nacionalista, por isso crítica com relação à nossa cúpula política. E, claro, feminista em processo eterno de aprendizagem!

Fonte: Blogueiras Feministas

 

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