Quem é o “analfabeto político”?

Aprender a ler é uma tarefa difícil. Exige mobilizações cognitivas e sociais. A postura do corpo em segurar a página, o virar das folhas, a direção da escrita, os fonemas, a transparência ortográfica (o quanto o modo de falar se aproxima do que escrevemos), como observamos as pessoas interagirem com o texto, entre outras ocorrências, impactam a reação diante dos parágrafos. Numa tirinha ou numa charge, por exemplo, existem referências específicas de eventos históricos. O sentido é circunstancial, marcado no tempo. As piadas do twitter nem sempre terão graça para sua mãe, os vídeos que ela te manda em grupos de Whatsapp, igualmente, com o passar dos anos, essas mesmas piadas talvez perderão a “validade”. O que faz rir, revolta, comove, diz muito sobre a trajetória pessoal, ao que tivemos acesso. Nos últimos capítulos da novela “Império”, quando o Comendador encontrou a piscina cheia de dinheiro meu primeiro pensamento foi “Dinheiro velho! São cruzeiros? Não vai dar pra usar nada”. Qual minha surpresa quando Maria Marta disse “Euros!”. Ainda bem que o autor foi didático, aposto que muita gente também não sabe como é um euro porque nunca viu um.

Por DEBORAH SÁ, do Cabine Privativa

Entendemos um enredo, quando temos acesso às referências que ele pede. Fazer inferência de um conteúdo, pescar ironias, demanda que o leitor compreenda não apenas quando o texto foi produzido, mas para quem, em que época, com qual finalidade. Ser leitor não significa imediatamente ser escritor ou orador, várias pessoas não ficam confortáveis se perguntadas sobre o que acham de assuntos como política. Os mais reservados tem receio até de dizer o que pensam de um filme, se isso implica expor suas impressões diante de uma obra. Inúmeras vezes, principalmente quando fiz EJA, meus colegas de sala ficavam realmente paralisados, sem saber por onde começar “Eu acho que…”, “Eu achei legal”, sem desenvolver a ideia adiante. Em certos momentos, sentei com três ou quatro pessoas ao meu redor, ajudando, conversando, depois revisando, colocando pontuação. As vírgulas me embananam até hoje, mas na época, era um diferencial claro, não de que eu era especial ou superior, mas de alguma forma, recebi mais estímulos a dizer o que pensava.

Tinha cara de pau suficiente de levar meus textos e debater com colegas de classe sobre gênero, simplesmente porque não gostava das posturas machistas. Só que isso demorou anos para acontecer. O feminismo não bateu na minha porta de panfletinho, não ouvi de comunismo nas aulas de História. Na verdade, uma tia minha, teve um breve período comunista e eu achava essa fase dela muito chata e a internacional, uma chatice maior ainda. Ela começava a falar e eu pensava “Blablabla, comunismo, tá bom, affff”. Eu já votei no PSBD, mais que isso, eu já dei meu voto para o Alckmin! E por quê? Porque um familiar que eu respeito muito, entendia todas aquelas siglas do Jornal Nacional e votava nele e no Covas, então não podia ser coisa ruim. Após não mais conviver com essa tia (a qual afirma que sua rebeldia foi uma fase), por experiências individuais, me aproximei do feminismo e posteriormente, das ideias de esquerda. A política fez sentido a partir do momento que atribuí relação às vivências.

Endossando Paulo Freire, primeiro precisei ler o mundo para depois entender a palavra. “Patriarcado”, “Misoginia”, “Desigualdade”, “Elitismo”, “Privilégio”, essas categorias me afetavam antes que pudesse nomeá-las, mas foi necessário me sentir uma leitora política capaz, e então, pude me expressar também nessa esfera. Não se aprende a ler só com experiências escolares, mas é de lá que ansiamos a maior agência alfabetizadora. E também é na escola, que os juízos morais de professores classificam alunos entre os “com futuro” e “que não servem pra nada”. Culpa-se o aluno por desinteresse, “porque não quer nada com coisa alguma”, preguiçoso, desatento, aéreo, “só presta atenção quando convém”, “inteligente para o que não presta”, enfim, são muitos os nomes que as pessoas dão para os alunos que não atendem as expectativas de aprendizagem. Não raro, os alunos menos estimulados por professores, são negros, mais pobres, sem tanto acesso ao capital cultural legítimo, ao palavreado escolar, com variação linguística menosprezada (“fala errado, por isso escreve errado”).

Dias atrás, compartilharam o vídeo de uma jovem negra. Perguntam para ela “Você é direita ou de esquerda?”, então ela recorre á mãe. Veja bem, ela não era uma moça com camiseta de partido ou representando um cargo político, era o primeiro protesto que  participava, ela não fez um discurso virulento pedindo a morte dos comunistas. Ela estava participando, querendo mudanças, porém, sem compreender tão bem o que significava exigir tais alterações, a ambição?: “Que o país melhore”. E as pessoas riram e fizeram mil piadinhas do quanto a moça estava “perdida”.

Não entendi a referência ao euro na novela, aposto que você, leitor, não é fluente em todos os idiomas, pode entender uma piada, mas não todas. Talvez saiba explicar sua área de atuação, mas não explicar tudo de todos os temas do universo. É assunto pra caralho. Dificilmente, sabe todos os mistérios de todas as plantas, o funcionamento das engenhocas. Até cientificamente há recortes, investiga-se um objeto de estudo de um período ao outro e tem que ler muito, pra construir alguma base teórica sem respostas fechadas.

Por qual razão o analfabeto político é motivo de riso? Aliás, não seria essa uma atribuição por demais classista? O analfabeto sabe o que são letras, sabe os usos sociais da escrita, interage, produz cultura, vive, cria laços afetivos, ele lê o mundo, nem sempre lê a palavra. Como se ao ser alfabetizado alguém imediatamente se tornasse mais empático. Como se na esquerda não houvessem casos escabrosos de violência contra mulher. Como se ser alfabetizado politicamente não fosse um privilégio.

Privilégio discursivo para fazer-se exposto, pegar no megafone, ter vocabulário adequado, responder às perguntas. Privilégio, por ler em outros idiomas e ter acesso aos protestos em horário de comercial. Privilégio, por não se entediar e acompanhar um textão de Facebook (se não é você mesmo que o produz). Se os “analfabetos políticos” precisam se esforçar, ler e reler sentenças; buscar fontes que façam sentido; se têm vergonha de expressar dúvidas dada a própria “ignorância”; se são “caso perdido”; alfabetizar-se politicamente é um direito para poucos. Demanda uma percepção de uma “competência leitora” da palavra, do mundo, do próprio saber.

Algumas pessoas crêem que o aprendizado político deve ocorrer na sala de aula, mais especificamente nas aulas de História. Concordo parcialmente, de fato, muitas vezes o aluno tem na escola a única plataforma de acesso ao saber legitimado, ao debate, perceber a própria historicidade, afinal, nem todo mundo janta conversando sobre os partidos políticos além do senso comum (“é tudo ladrão”). A Educação tem um papel importantíssimo na formação política das pessoas, mas não é uma fonte infalível, mágica e incessantemente emancipadora. Não é a única forma de aprender política. Tampouco, História é a única matéria libertadora. Geografia, Filosofia, Sociologia, Artes, Matemática, Literatura, Ciências, em todas essas disciplinas é possível fortalecer a autonomia dos alunos. Existe a educação não formal, existem as associações de bairro, existem as mobilizações nas igrejas que distribuem recursos e materiais entre os que mais precisam. Tudo isso educa.

Essa discussão me lembra bastante aquelas reportagens sobre os meninos que aprendem a tocar violino em projetos na favela. Quer dizer, pra muita gente é de encher os olhos d’água que essas crianças aprendam algo “que preste”. Ou seja, nós achamos que só os dignos de serem “salvos” pela cultura, são aqueles que atendam as nossas expectativas, os que se aproximam da imagem de um bom aluno. Aos que não se interessam por aprender a ler nossas cartilhas? Preguiçosos. Aos que não se empolgam em discutir política, mas tem a audácia de mostrar a cara no microfone? Piada. Os conservadores reclamam da inclusão digital nos seus espaços, nas redes sociais, nos fóruns de internet. Agora, alguns setores da esquerda fazem chacota de quem acabou de entrar nas discussões políticas e pela própria trajetória, se opõe ao governo atual, porém, não possuem todas as respostas na ponta da língua. A escola espera um aluno modelo, que sabe tudo, com capital cultural próprio da classe-média. Tais expectativas não são tão destoantes do que determinados militantes esperam dos recém chegados. Desejam que agreguem ao movimento de esquerda os que “já nasceram feitos”. Medem a credibilidade, ou mesmo o potencial dos opositores, exigindo que uma moça de dezessete anos (ou menos), tenha o traquejo intelectual de um ativista “calejado”.

Aprender a ler é uma tarefa difícil. Exige mobilizações cognitivas e sociais. Ainda mais se o desafio a ser decodificado é pouco divulgado e de difícil acesso. A responsabilização pela evasão ou repulsa dos “analfabetos políticos”, frente aos movimentos sociais, não é apenas da mídia, da preguiça ou do umbiguismo, é um distanciamento entre prática, experiência e discurso. É também daqueles que não querem fazer trabalho de base, dos que supõem de antemão que o “analfabeto político” é incapaz de ler o mundo, quiçá a Palavra.

[1] Ensino de jovens e adultos. É o antigo supletivo

[2] Provavelmente ter um pai pastor de igreja e uma mãe vendedora, ambos bem “falantes” me ofereceram modelos de comportamento. Ademais, mesmo crescendo na periferia, eu era uma aluna branca, geralmente, bem quista entre (a maioria dos) professores.

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