Fraude nas Cotas: a culpa é de quem?

As ações afirmativas estão, sem dúvidas, entre as maiores conquistas recentes do movimento negro no Brasil, juntamente com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da lei 10.639-03.

Segundo dados oficiais da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), cerca de 150 mil estudantes negros(as) ingressaram em instituições federais de ensino superior nos primeiros três anos da Lei de Cotas 12.711-2012.

Mas será que deveríamos comemorar esse número? Será que todos(as) esses(as) estudantes são mesmo negros(as)? Se forem, são 150 mil estudantes negros cotistas a mais ingressando na universidade, o que implica, no mínimo, em algumas medidas: na necessidade do aumento dos recursos destinados à assistência estudantil; na ampliação do pessoal técnico especializado para o atendimento das demandas especificas deste grupo; e em um rearranjo das universidades para não tornar a formação superior ainda mais hostil à presença de estudantes com perfil socioeconômico de baixa renda. E isso tem sido feito?

Para além dos pontos mencionados, há a necessidade urgente de se estabelecer uma forte fiscalização do sistema de ações afirmativas, tanto nas universidades quanto nos concursos públicos. Dia a pós dia estouram denuncias de fraudes nas cotas, desde Salvador até o limite da fronteira Sul do país os casos se multiplicam.

Há poucos dias a estudante Thaís Vieira, negra e cotista da Universidade Federal da Bahia, teve que desistir do curso e voltar para São Paulo, pois durante todo o tempo em que esteve na universidade não conseguiu assistência estudantil. Mesmo após várias tentativas, ela se deparou com as negativas da universidade, que por sua vez, pôs a culpa na atual crise econômica. Somente na UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), localizada região da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), no município de Foz do Iguaçu, cerca de 200 estudantes receberam o aviso de corte de bolsas para 2016.

Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Espirito Santo tiveram que realizar vários seminários com a representação de acadêmicos, juristas e entidades do movimento negro para discutir como impedir as recorrentes tentativas de fraudes nos concursos públicos.

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Em setembro de 2015, estivemos na Comissão Permanente de Direitos Humanos do Senado Federal, com a finalidade de tratar da legalidade das cotas, das tentativas de fraude e da necessidade de fiscalização das politicas de ação afirmativa. A audiência foi presidida pelo o senador Paulo Paim e teve como tema:

Cotas para negros e o conflito entre o Direito Administrativo e o Direito Constitucional

A fim de retomar as cobranças e denuncias feitas naquela oportunidade, transcrevo aqui na íntegra a minha fala registrada na ata oficial da audiência:

“O Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT – RS) – Muito bem, João Bosco Borba, Presidente da Anceabra! De imediato, passo a palavra a Danilo Rosa de Lima.

O Sr. Danilo Rosa de Lima – Bom dia a todas e a todos! É uma satisfação enorme estar aqui e poder me expressar para trazer um pouco das nossas aflições e questionar sobre alguns dos nossos sonhos que estão sendo frustrados.

Antes de tudo, eu quero dizer novamente da grande figura do Senador Paulo Paim, com iniciativas tão belas quanto esta.

Eu pude acompanhar a audiência homenageando Abdias do Nascimento. Foi emocionante. É bastante importante lembrar isso. Inclusive, Abdias do Nascimento escreve o livro O Quilombismo e o dedica à juventude negra brasileira. Então, é uma referência sempre presente, quando não nos nossos discursos, nos nossos corações.

Para hoje, a inquietude a partir de algumas falas é inevitável. Trazendo um pouco do que já adiantou o Senador, do ingresso até o diploma, existe uma jornada que é, para o estudante negro, dolorosa, sofrida, conflitante, combativa e, muitas vezes, determinante, porque faz com que os estudantes, por conta de um problema de racismo ou de falta de políticas necessárias, abandonem a sua universidade e, mais, com que se sintam tão violentados na sua subjetividade que não queiram mais entrar na universidade, não queiram mais participar desse espaço. Eu acho que essa é uma discussão que precisamos fazer.

Eu tenho acompanhado alguns dados sobre as políticas afirmativas, e, se não me engano – corrija-me, Secretário, se eu estiver equivocado –, são 150 mil estudantes negros que ingressaram por meio das políticas afirmativas. São estudantes negros, destaco novamente. E aí eu fico me perguntando qual é o montante adicional de recursos que têm sido liberados ou articulados pelo Governo Federal para garantir que os estudantes permaneçam na universidade, porque entendemos que o estudante negro entra com demandas específicas, assim como o estudante indígena entra com demandas específicas, sobretudo às ligadas à questão financeira. Então, qual o recurso está sendo articulado para isso? Como a questão do corte tem nos afetado? Isso está claro para todo mundo?

Eu sou um estudante que tenho bolsa de pesquisa, mas também não tenho. E aí eu volto à referência do sonho frustrado: você ingressa na universidade, mas, às vezes, não tem condição nenhuma de permanecer na universidade. A minha bolsa está atrasada.

Então, você tem de criar alternativas para se manter. E, com certeza, esse não é um fato isolado.

Esta é outra questão que me deixa bastante inquieto: se existe uma previsão normativa no sentido de que as comissões avaliadoras sejam instrumentos efetivos que podem ser usados para o combate às fraudes, por que nós, entidades negras, movimentos negros e Governo não assumimos a postura de utilizar esse instrumento de forma objetiva como um método de barrar a fraude?

Eu tenho plena convicção de que o direito positivo, a lei por si só, não resolve o problema do negro. Há uma lei que criminaliza o racismo que não é de hoje, e esta audiência é evidência clara de que o racismo no Brasil ainda é um problema estrutural que precisamos vencer. Então, tão somente estar escrito na lei que existe uma previsão não garante nosso direito. Penso eu que nosso esforço, nossa dedicação tem de ser no sentido de efetivar esses comitês em todas as esferas, tanto nos certames dos concursos quanto nas cotas nas universidades. Precisa haver comissões que avaliem isso. Eu vejo, na minha universidade, que existem pessoas que, definitivamente, não têm o perfil étnico-racial marcado, mas que estão utilizando a política de cotas. Isso é visível.

Por fim, eu acho que o Governo tinha de ter esse protagonismo. O movimento negro tem denunciado isso há bastante tempo. Eu acho que deveria sair do Governo…

(Soa a campainha.)

O Sr. Danilo Rosa de Lima – …a assertiva de posicionar os comitês avaliadores nacionalmente como instrumento central e essencial para o combate ao racismo e às fraudes nas ações afirmativas.

Era isso.

Obrigado pela oportunidade.

O Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT – RS) – Muito bem, Danilo Rosa de Lima, que, de forma objetiva e direta, ficou no tempo!”

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E as instituições de ensino?

Mas, além destes pontos apresentados, se quisermos vencer a batalha contra as fraudes, será preciso trazer outro polo fundamental neste debate: as instituições de ensino superior e os gestores públicos que organizam concursos.

Se por um lado há um indivíduo mau-caráter que intencionalmente provoca dano ao direito de ação afirmativa dos estudantes negros(as) e que deve responder criminalmente por isso, por outro lado, a instituição muitas vezes é conivente e não faz efetivamente nada para evitar ou punir as fraudes.

As instituições que apresentam recorrentes casos de fraude nos processos seletivos com ação afirmativa também precisam ser judicialmente responsabilizadas e seus gestores enquadrados por improbidade administrativa, uma vez que não estão exercendo zelo pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade com o bem público.

Danilo Lima é ex. Diretor de DCE – UFSCar e conselheiro municipal juventude em SP. Compõe coordenação do Coletivo Nacional de Juventude pela Igualdade Racial – CONAJIR, bem como a da Juventude Educafro, é articulador Fórum Nacional de Juventude Negra e membro do Grupo de Estudos Étnico-Raciais na Universidade Federal de São Carlos. Danilo é também um dos articuladores nacionais do EECUN, Encontro de Estudantes de Coletivos Universitários Negros.

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