Navvab Aly: “O meu cabelo não é só cabelo, é a minha identidade”

De que forma se pode combater o preconceito, qual é o sentido do feminismo e o que é que isso tem a ver com os cabelos crespos de uma rapariga de 20 anos? O GPS foi conhecer Navvab Aly

por Filipa Teixeira, do SábadoPT

Foto: ADRIANO MIRANDA

Africaníssima nas suas raízes, Navvab Aly é uma rapariga de 20 anos que se dedica a desconstruir padrões sociais através de vídeos que publica regularmente na sua página A Preta Aly. A 4 de Novembro, Navvab representou um painel de seis oradores escolhidos para abordar o tema Bridges [Pontes] no TEDxPortoWomen, num caso exemplar de autocandidatura: “Foi ela quem nos contactou. Percebemos que tínhamos ali uma mensagem importante a transmitir”, diz Norberto Amaral, um dos organizadores. Acérrima feminista e defensora da igualdade de género, “falou de muito mais do que de cabelos”. O seu percurso é um reflexo do racismo, da opressão dentro da comunidade negra e da progressiva asfixia da identidade cultural da mulher africana pelos padrões de beleza ocidentais.

O teu pai é ganês, a tua mãe é guineense com raízes libanesas e tu nasceste e viveste em Cabo Verde antes de te mudares para Portugal aos 17 anos. Como é que construíste a tua personalidade no meio destas influências?
Quando as pessoas perguntam “és de onde?” eu fico confusa, dá-me uma branca e penso “oh meu Deus, o que é que eu vou dizer?!” [risos]. Basicamente os meus pais conheceram-se na Guiné-Bissau e depois foram viver para Cabo Verde. Os meus irmãos ainda nasceram na Guiné e eu fui a única que nasci em Cabo Verde. Havia muitas influências em casa, era uma casa superafricana mas com uma grande mistura de culturas. Quando penso na minha infância penso em músicas do Gana, penso em comidas tradicionais africanas… muito sinceramente não sei como consegui aprender o crioulo de Cabo Verde, foi mesmo só na escola com os meus colegas e com a ajuda dos meus irmãos. Sinto-me cabo-verdiana mas também sinto muitas outras influências que são uma mais-valia para mim.

Dessas raízes surgiu a vontade de tirar a licenciatura em Relações Internacionais?
Houve uma altura em que queria ser médica. Depois percebi que aquilo não tinha nada a ver comigo – eu entro em pânico quando vejo sangue! [Risos] Ao longo da vida sempre gostei muito de línguas, de ler, de aprender a história dos países dos meus pais, de perceber a história dos outros países de África, sempre fui muito curiosa. Como não tenho uma nacionalidade concreta – já que sou de tantos lugares -, quis perceber melhor o mundo. Antes de ir para Coimbra, onde me licenciei, o meu maior sonho era trabalhar nas Nações Unidas. No entanto, com o tempo, desiludi-me, a ONU não era exactamente aquilo que eu esperava.

De que forma te desiludiu a ONU?
A maioria das pessoas acredita que a ONU pode salvar os países africanos que estão em guerra, que pode intervir nesses conflitos e que é uma instituição que dá prioridade ao ser humano. Na verdade é tudo um jogo político e de interesses de superpotências hegemónicas e a ONU não é o nosso super-homem da infância que tem a capacidade de “nos salvar” quando é preciso.

A desilusão motivou-te a seguir outro caminho?
Eu precisava mesmo de tirar toda esta utopia da cabeça e então, quando concluí a licenciatura em Relações Internacionais, quis seguir o mestrado em Estudos Africanos. África é a minha paixão. Quero um dia poder voltar a África e dar o meu contributo na diplomacia e na política africana.

Voltando à infância, tinhas vergonha do teu cabelo crespo. Quando tomaste consciência de que, assumindo o teu cabelo tal qual como era, estavas a assumir uma atitude positiva perante a diferença?
A minha mãe, por ter o cabelo liso, era a minha referência, a pessoa que eu admirava. Por isso comecei a esticar o meu cabelo. Entretanto surgiram algumas páginas na Internet sobre cabelos crespos e eu comecei a achar que afinal o meu cabelo não era assim tão mau. Um dia, aos 15 anos, cortei o cabelo em frente ao espelho. Lembro-me que a minha mãe estava na cozinha e ficou muito chateada porque estava mesmo curto! Mas depois ficou contente porque percebeu que eu estava a cuidar e a amar aquilo que era meu, aquilo que eu sou.

Sentiste pressão social?
Sim. Em Cabo Verde, mesmo entre as raparigas da mesma idade, existe opressão. Diziam que o cabelo era feio, que tinha de o desfrisar… e os rapazes também gozavam com as raparigas. Quanto mais liso fosse o cabelo, melhor era a aceitação. Quando vim para Portugal senti ainda mais pressão. Tinha consciência de que existia preconceito, de que o racismo era uma realidade. As pessoas olhavam para mim de forma diferente e eu conseguia notar no olhar – principalmente das pessoas mais velhas – que censuravam o meu cabelo e a minha cor de pele. Se tivesse um cabelo liso talvez não olhassem assim para mim.

A tua página surgiu como resposta a essa pressão social? Que idade tinhas quando a criaste?
Criei em Cabo Verde aos 15 anos. Comecei a tirar fotos e a fazer vídeos com tutoriais, coisas que partilhava só com as minhas amigas e colegas de escola. Elas incentivavam-me dizendo que gostavam dos meus conteúdos. Depois a página começou a crescer, apareceram leitores do Brasil e tudo. No início tudo tinha a ver com o cabelo, era uma coisa simples mas as pessoas gostavam porque não era assim tão habitual abordar este tema.

Como se deu a evolução dessa tua página?
Ela foi e é um reflexo das várias fases da minha vida. No início debrucei-me só sobre o cabelo, depois vieram questões relacionadas com o racismo e com o preconceito. Tomei consciência, principalmente quando vim para cá, que devia fazer vídeos e posts sob perspectivas diferentes, falar só sobre cabelo era muito redutor. Mudei o nome da página – antes era Crespas & Cacheadas Poderosas, agora é a Preta Aly – e a partir desse momento as pessoas sentiram-se mais à vontade para enviar mensagens e para partilhar situações. Hoje há muitos youtubers e bloggers, mas o difícil é encontrar alguém na Internet com quem nos identifiquemos, que partilhe a nossa realidade.

À medida que foste tendo um contacto mais próximo com os teus seguidores, foste abraçando outras causas, nomeadamente a feminista. 
O feminismo ainda assusta muito, mesmo as mulheres. Quando tu dizes “eu sou feminista”, ou quando expressas opiniões sobre igualdade de género, as pessoas ficam imediatamente de pé atrás. Confundem o conceito de feminismo com o radicalismo associado à superiorização da mulher relativamente ao homem. Foi na faculdade, ao relacionar-me com pessoas com uma direcção política e social mais vincada, que comecei a conhecer raparigas da minha idade que olham para o feminismo como um movimento importante e defendem as suas causas publicamente. Mas ainda há um cariz muito conservador na sociedade portuguesa que desvaloriza o feminismo. Já tive colegas a perguntarem-me: “Porquê o feminismo se nós somos todos iguais?” É estranho, mas acho que está relacionado com uma visão parcial que as pessoas constroem da realidade.

Em Cabo Verde encontra-se a mesma relutância?
O feminismo em África é encarado de forma diferente. Há muitas pessoas de vários países da África continental que consideram o feminismo uma exportação do Ocidente – uma coisa dos “brancos colonizadores” – e a rejeitam. As sociedades africanas, de uma forma geral, ainda são muito machistas e isso está culturalmente enraizado, é muito difícil combater essa mentalidade. Em Cabo Verde a situação não é muito diferente e um dos principais problemas é as próprias jovens e mulheres não perceberem o que é o feminismo e associarem-no a uma ideia que existe para perturbar a sociedade. No Verão tive uma conversa com uma senhora de uma instituição que ajuda crianças e adolescentes carenciados de Cabo Verde e ela disse-me: “Tudo bem, nós precisamos do feminismo, mas temos de perceber que tipo de atitude feminista é que queremos adoptar para conseguir chegar às nossas meninas.” E deu um exemplo: alertando para assuntos como a prostituição, que tem crescido bastante em Cabo Verde. Não podemos olhar para o feminismo isolado da realidade onde estamos a actuar, há assuntos que são mais ou menos próximos de uma determinada sociedade e que os devemos saber identificar.

Há falta de preparação das instituições de ensino e das entidades públicas?
Sem dúvida. Na altura em que eu estudei não existia nas escolas nem nos liceus uma sensibilização directa sem tabus, era quase proibido falar sobre aquilo. Os professores não nos incentivam a discutir assuntos relacionados com a igualdade de género e às vezes, quando alguém levava o assunto para a sala, era alvo de ataque.

Imaginas-te a quebrar esses tabus quando regressares a Cabo Verde?
Já pensei nisso de diversas formas. Gostava de criar uma instituição onde pudesse ajudar crianças, raparigas e rapazes. A discussão sobre a igualdade de género só pode ir longe se os rapazes também estiverem sensibilizados para isso, somos todos parte da mesma sociedade. Gostava de promover aulas, palestras onde fossem abordadas questão de igualdade de género, workshops activistas que depois pudessem ser reproduzidos nas escolas. De momento, enquanto estudante universitária, o que consigo fazer são os meus vídeos. Com eles vou conseguindo sensibilizar as pessoas e colmatar a falha muito grave que existe no pensamento feminista em África.

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