Emanoel Araújo e a mão negra que talhou o Brasil

Um dos maiores artistas do Brasil, Emanoel Araújo conseguiu demonstrar que o afro-brasileiro poderia ser a chave para entender o país. O Museu Afro-Brasil, que ele criou e dirigiu até o fim da vida, é seu maior legado.

Nascer no dia da Proclamação da República e morrer no dia em que o Brasil comemorou 200 anos… Pode parecer mera casualidade, mas isso é Emanoel Araújo, um dos maiores artistas do país, que fez da sua vida e obra uma reinvenção da brasilidade.

E, justamente por isso, é difícil escrever sobre ele.

Quem o conheceu de perto, sabe que Emanoel Araújo não era uma pessoa fácil, podendo se tornar inacessível, ou até mesmo inviável para muitos. O jornalista Claudio Leal lembrou de maneira afetuosa que Emanoel era um filho de Ogum que desejava ser filho de Xangô. Talvez essa ambivalência entre a guerra e a justiça e a fina fronteira que as separa se embrenhassem dentro dele, fazendo com que a tempestuosidade e altivez que o caracterizavam se combinassem em intensidades que por vezes atraíam, por vezes afastavam.

É impossível não pensar que sua maré intempestiva fosse parte da armadura que ele precisou talhar para viver, ao seu modo, um Brasil espúrio, violento e racista. Um país que insistia em dizer em quais lugares Emanoel poderia e deveria estar. E para essas limitações impostas, por vezes o tsunami era a saída possível.

Para nossa sorte, as respostas também vieram na forma de arte. Ou melhor, na ressignificação que a arte pode fazer. Esse homem que carrega Deus no nome (Emanoel significa “Deus está conosco”), dominou a gravura, a escultura, o desenho, a pintura, a cenografia, a curadoria de uma maneira muito singular. “Artista completo” é o termo que se usa nesses casos. Para mim, o melhor seria “artista que transborda”.

Na primeira versão deste texto, eu havia elencado e contextualizado aquilo que considerei os principais feitos artísticos de Emanoel Araújo. Sua primeira exposição aos 19 anos – que inaugurou uma trajetória de 55 exposições individuais, além das quase 200 mostras coletivas –, os anos em que lecionou nos Estados Unidos, os inúmeros prêmios recebidos no Brasil e no mundo; sua ação transformadora na Pinacoteca do Estado de São Paulo (1992-2002), sendo o responsável direto pela reforma da instituição, ampliando e enegrecendo seu acervo, seu repertório museológico e sua interação com o público; a impactante exposição a Mão Afro-brasileira em 1998. E isso é apenas parte de sua obra.

Emanoel Araújo era um homem de águas profundas.

Então preferi falar sobre o que aprendi com ele.

Aprendi que um homem pode ser um museu. E que um museu pode ser o Brasil.

O Museu Afro-Brasil em São Paulo, foi, sem dúvida, o que mais frequentei na minha vida. Por questões familiares, pessoais e por escolhas profissionais. Quando ele foi inaugurado, em 2004, me lembro de percorrer os corredores da exposição permanente e pensar “como alguém conseguiu colecionar isso tudo?”. Porque é importante dizer que Emanoel também era um colecionador, um memorialista, e que o acervo que viabilizou esse que considero o museu mais importante do país também foi obra dele e do olhar que ele lançou para o mundo.

Era a quantidade de informação tridimensional que mais me chamava atenção. E essa não era uma sensação só minha. Vi muita gente saindo extasiada da exposição permanente por ter descoberto histórias, pessoas e memórias que desconhecia.

Hoje, passados quase 20 anos das primeiras visitas, entendo que meu encantamento não era apenas pelos retratos de Juliano Moreira, Manuel Querino, Carolina Maria de Jesus; ou os quadros dos irmãos Thimóteos, as esculturas de Rubens Valentim e instalações de Rosana Paulino; ou então pelas bateias que comprovavam o conhecimento tecnológico que os africanos escravizados empregaram na mineração oitocentista, as máscaras de diferentes partes da África, os colares de ouro das quitandeiras negras da Bahia, a sala de ex-votos, ou então a famigerada carcaça do navio negreiro que lembrava que o Brasil é um país de tormento.

Esses eram subterfúgios que Emanoel usou para falar de algo maior: a mão negra que talhou o Brasil. E assim como a de Emanoel Araújo, essa mão era bonita. Sua completude como artista não se contentou em restaurar a dignidade, a honradez e a altivez que atravessou a afrobrasilidade. Era imperioso mostrar a beleza, e trazê-la para a centralidade da história do Brasil. Vanguardista que era, Emanoel sabia como poucos que forma também é conteúdo, e vice-versa.

E mais: Emanoel Araújo conseguiu demonstrar que o afro-brasileiro poderia ser o caminho para entender o Brasil inteiro. Basta dizer que esse homem de 81 anos morreu concebendo uma provocação que não se contentava com o 7 de Setembro e lançava os 200 anos da Independência do Brasil para o 2 de Julho baiano.

Por isso, me arrisco a dizer que o Museu Afro-Brasil (instituição que ele criou e dirigiu até o fim da vida) foi sua maior obra. Aquela que mais se pareceu com ele, porque foi mais do que uma “obra completa”. O Museu Afro-Brasil é uma obra que transborda, que inunda, que provoca. A obra de um homem, de um intelectual, de um artista negro. E espero que as autoridades governamentais tenham a decência de reconhecer isso, e manter esse legado.

É curioso pensar que o pai de Emanoel queria que seu primogênito rompesse com a linhagem de ourives que marcava a história da família há gerações. Mas, o fruto não cai muito longe do pé. O menino negro de Santo Amaro da Purificação (BA) se apropriou e reinventou sua ancestralidade. Mas a joia que ele construiu não era de ouro, nem de prata. Era a própria mão negra que trabalhava.


Ynaê Lopes dos Santos

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

+ sobre o tema

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Eu, mulher negra…

EU, MULHER NEGRA…Eu, mulher negra…Tenho orgulho de quem sou...

Presidente de Portugal diz que país tem que ‘pagar custos’ de escravidão e crimes coloniais

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse na...

para lembrar

Ari Cândido, o primeiro fotojornalista negro de guerra do Brasil

“A fragilidade gelatinosa do seu pré-roteiro acumula situações sempre...

A trajetória e a obra do artista Sebastião Mendes de Sousa

Na madrugada de 14 de setembro de 2016, parte...

‘Negras cabeças’ debate espaço da mulher negra nas artes conduzida pelo cabelo e ancestralidade

No dia escolhido para dar visibilidade à luta das mulheres...
spot_imgspot_img

Quem foi Miguel Barros (1913-2011), o artista plástico e antirracista apagado da História da Arte no Brasil?

O Brasil possui muitos nomes de destaque nas artes plásticas. Pessoas que entregaram suas vidas à criação e deixaram ricas contribuições para se pensar...

Chega a São Paulo Um defeito de cor, exposição que propõe uma revisão historiográfica da identidade brasileira por meio de uma seleção de obras em...

De 25 de abril a 1º de dezembro, o Sesc Pinheiros recebe "Um Defeito de Cor". Resultado da parceria entre o Sesc São Paulo...

Morre Ykenga Mattos, que denunciou o racismo em seus cartuns, aos 71 anos

Morreu na manhã desta segunda-feira aos 71 anos o professor, sociólogo e cartunista carioca Bonifácio Rodrigues de Mattos, mais conhecido como Ykenga Mattos. Vítima...
-+=