Racismo contra elfos e hobbits negros em ‘O Senhor dos Anéis’ ignora miscigenação na Europa pré-histórica

Ideia de que a região é e sempre foi um continente 'branco' está errada, trata-se de uma ilusão

Peço a indulgência do leitor diante do meu entusiasmo completamente irracional, mas passei os últimos dias meio perdido numa névoa de empolgação, sabendo que a Terra-média está de volta às telas. Ocorre que o universo criado pelo filólogo britânico J.R.R. Tolkien (1892-1973) acaba de virar uma série de streaming, que vai mostrar o que aconteceu milhares de anos antes de “O Senhor dos Anéis”.

Fiz mestrado e doutorado sobre a obra do autor, pela qual sou apaixonado já faz quase um quarto de século, e realizei a revisão técnica da dublagem e das legendas brasileiras, o que explica a minha expectativa. Mas é uma pena que eflúvios fétidos oriundos da internet estejam poluindo, em parte, essa animação.

Tem gente fula da vida por aí (em geral, os doutrinados pela extrema direita no mundo de língua inglesa e suas cópias no Brasil e em outros lugares) com o fato de que atores negros e da América Latina estão interpretando alguns dos célebres elfos e hobbits do mundo de Tolkien.

É uma tristeza, eu sei, mas isso pelo menos nos oferece o gancho perfeito para regar “O Senhor dos Anéis” com doses generosas de arqueologia, genômica e bom senso.

Quem anda se descabelando com elfos e hobbits etnicamente diversos diz, entre outras coisas, que Tolkien imaginou sua Terra-média como o passado mítico da Europa. Portanto, pessoas não brancas não caberiam nesse cenário.

Além disso, acrescenta maliciosamente esse povo, nos filmes de “O Senhor dos Anéis” (que se passariam milhares de anos mais tarde) só aparecem elfos e hobbits brancos. Isso não significa que teria havido um genocídio de parte desses povos?

Bem, para começo de conversa, a Terra-média não é nem nunca foi a Europa. Tolkien apenas ressuscitou uma antiga expressão das línguas germânicas, usada para designar todas as terras habitadas por seres humanos —na prática, os continentes do Velho Mundo, já que a palavra foi cunhada antes que as Américas e a Oceania fossem conhecidas.

Mas, mesmo que o termo se referisse apenas à Europa, a ideia de que a região é e sempre foi um continente “branco” está errada. Trata-se de uma ilusão criada pelos últimos 8.000 anos de história —que são só a cereja do bolo, considerando que membros da nossa espécie habitam o continente europeu faz mais ou menos 40 mil anos.

A arqueogenômica, novíssima disciplina que tem conseguido decodificar boa parte do DNA de pessoas que morreram há milênios, indica que a Europa, na maior parte desse período, foi terreno fértil para a miscigenação e o encontro de povos muito distintos entre si.

Para começar, diversas ondas diferentes de caçadores-coletores passaram por lá durante a Era do Gelo, amalgamando-se e às vezes desaparecendo (em geral, por motivos climáticos).

Praticamente todos os europeus atuais descendem de pelo menos três grupos: caçadores-coletores, representando essa herança da Era do Gelo; agricultores do Oriente Médio; e, por fim, pastores das estepes do mar Negro.

Bem, a arqueogenômica mostrou que os caçadores-coletores, até 8.000 anos atrás, frequentemente tinham pele escura, combinada com olhos claros. A pele mais clara foi trazida para o continente, de forma irônica para os racistas atuais, do Oriente Médio. E esses grupos conviveram entre si durante milênios até se amalgamarem totalmente.

E essa, como qualquer brasileiro deveria saber, é a resposta à pergunta dos supremacistas brancos da web. Nossos 500 anos de miscigenação produziram milhões de brasileiros “brancos” que descendem de indígenas e negros. A diferença de escalas de tempo não apaga o fato de que não existem “raças puras” em canto algum da Terra —e que tampouco elas existiriam na Terra-média. Ainda bem.

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