Vamos falar sobre a hiperssexualização de corpos trans?

Em uma busca recente pela Internet, sobre esse termo, o que mais encontrei foi a hiperssexualização de corpos negros, um tema totalmente legítimo e que sim, precisa ser exposto. Mas como mulher transexual, e tendo assim, meu lugar de fala, sinto que também é preciso dar voz à mulheres trans, invisibilizadas e vítimas de uma sociedade cisnormativa, machista, cissexista. Como psicanalista e estudiosa sobre o tema resolvi escrever esse texto.

Ao contrário do que as pessoas acreditam, a hiperssexualização não é algo positivo, ela não valoriza características físicas, ou seja, não sou hipersexualizada porque tenho atrativos físicos; A hiperssexualização é totalmente danosa, porque ela é capaz de promover a desumanização de uma pessoa, colocando-a no lugar do objeto, do fetiche. É como se a mulher branca cis fosse “a boa pra casar” enquanto a mulher trans é sempre colocada como a gostosona, siliconada, sexy, quente, aquela que faz o “melhor sexo oral” (essa fala não é minha, mas escuto com muita frequência), estereótipos reforçados pela indústria pornográfica.

Ver pessoas somente como ” Corpos a serem desfrutados” é reduzi-las a um mero objeto sexual, onde a relação corpo/ mente deixa de existir. É como se nossa existência estivesse limitada a satisfazer somente as necessidades sexuais do homem cis hetero, e o sentimento, a conexão emocional, a ligação afetiva, a cumplicidade ficasse restrita à mulher cisgênero e muitas vezes esse discurso é declarado e normalizado por vários homens cis heteros.

Quando um homem me diz, por exemplo, que nunca fez sexo com uma mulher trans e tem curiosidade, principalmente porque esse homem já deve ter visto algum conteúdo adulto com mulheres trans ( o Brasil é o maior consumidor de pornografia trans no mundo), esse homem me coloca em um lugar de fetiche, objeto. É como se eu viesse ao mundo para satisfazer unicamente a curiosidade do homem cis hetero e não como sendo uma pessoa, um ser humano como outro qualquer, que têm sentimentos, que têm necessidade de ter relacionamentos saudáveis, que merece afeto e principalmente pode ser amada assim como uma mulher cisgênero, sem essa cisão entre o “corpo desfrutável” e o “corpo pra casar”.

Esse processo objetificador, que separa os corpos entre os que são amados e aqueles que não são amados, é totalmente adoecedor. Quer matar um ser humano? Tire a sua humanidade, transforme-o em uma coisa, em um objeto. Pessoas trans são mortas em vida, a medida que lhes é negado o básico a qualquer ser humano: amor, afeto, sentimento. O índice de suicídio em pessoas trans é altíssimo, e essa negação de direitos básicos à pessoas trans mata, exclui, adoece. Minha preocupação é justamente a “normalização” do fetichismo, da objetificação e quando questionamos esse comportamento somos chamadas de “loucas”, com a justificativa de que toda a mulher quer ser desejada, como se a objetificação fosse uma valorização do corpo trans, o que está muito longe de ser verdade.

A transfobia é tão estrutural que sabemos que muitos homens podem sim construir um relacionamento com mulheres trans, se eles próprios olhassem nossos corpos como sendo corpos de mulheres.

Já ouvi de muitos homens que jamais se relacionariam com mulheres trans por não conseguir vê-las como mulheres, e ao serem questionados sobre sua orientação sexual ( afinal se sentem atração por um outro homem não seriam heterossexuais), eles dizem que é só sexo, diversão, entretenimento, como se a ausência do vínculo afetivo não configurasse uma orientação homossexual.

Por outro lado, os que nos enxergam como mulheres, preferem as mulheres cis por não conseguirem lidar com a transfobia e o preconceito social.

Até quando nos colocarão nesse lugar? Até quando irão negar nosso direito básico ao amor, afeto? Quando poderemos enfim ser vistas pra além do corpo físico? Porque alguns corpos são amados e outros não? Em uma sociedade em que há a supervalorização do sexo, a normalização da hiperssexualização precisa ser questionada, investigada, precisamos falar e refletir sobre isso, pra que possamos ao menos dar voz a pessoas que sofrem, que adoecem e que não são inferiores nem superiores. Somos seres humanos. Merecemos respeito, dignidade, visibilidade e inclusão. Continuamos na luta!

Adriana Beatriz Batista
Psicanalista
Funcionária pública
Mulher transexual

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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