Do selfie que ninguém curtiu

Agora o mundo é selfie e a literatura, infelizmente, tem sido também e nesse vasto vazio virtual temo que só me reste o fatídico clic, clic, clic…

Por Michel Yakini, 

Reprodução/Flickr/Paul Jacobson

Há um convite à vigilância em cada clic, clic, clic… Estou cercado, mas capenga de afeto, conexão demais e presença de menos. Na ansiedade do compartilhamento, engasgado por uma curtida, na fé de um retweet ou de outro entorpecente digital que afague meu sorriso fenda e meu melancólico repertório monossilábico.

Agora mesmo, não paro de pensar naquela pessoa que não comentou minha postagem, porque ninguém curtiu meu selfie, porque não fui compartilhado e quase deixo de escrever, quase me esqueço de ser.

E eu que tanto confio nos sopros do segredo, no cheiro da presença e no giro da coletividade, me pergunto: Onde vai parar esse biombo de incoerência?

Me diga: Você teria coragem de ler um texto de um autor vivo que nunca postou umselfie? Dedicaria suas preciosas curtidas a um chato de galocha que teima em fazer autorretrato com palavras? Que é cheio de querer desmembrar a vida em prosa, mas não tem coragem de postar um bendito sorrisinho falso? Me diga…

Aprendi que segredo é magia que não se entrega de bandeja. Que presença é premissa de coletividade. É caldo que enche a gamela e magnetiza o entorno. É feijão que cheira aqui pra alimentar a vizinhança.

Mas em meio à geração hi-tech não sei se vale mais ser um escriba enrustido de modelo, ou um modelo enrustido de escriba. Qual a seta mais potente pra enfiar no meu umbigo?

No espelho da desilusão insisto em entender se existe vida literária fora do universoselfie, nesse mondo-pós-mudernoso. Desse ventre que me pariu a força. Como disfarçar as olheiras de tristeza apenas com poesia? Mais palavra e menos pastel, pela amor! E chega de choradêra!

Antes de encerrar, não se esqueça de me passar a senha do wi-fi, pois preciso publicar esse texto e, por favor, compartilhe-o, ou pelo menos curta. Assim continuo vivo, sem depressão digital, num touch qualquer, escrevendo, vigiando e fingindo graça nisso tudo.

Agora o mundo é selfie e a literatura, infelizmente, tem sido também e nesse vasto vazio virtual temo que só me reste o fatídico clic, clic, clic…

Michel Yakini é escritor, educador e produtor cultural.

www.michelyakini.com

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