Nação bipolar

Sofremos de uma bipolaridade crônica em nossos afetos. Ou “o inferno são os outros”, como advertia Sartre na peça Entre quatro paredes (1944), ou acreditamos que “o outro é o paraíso”, conforme canta Vander Lee, em Românticos (1997). No romantismo brasileiro, as posições extremistas já davam as cartas no terreno literário. Basta consultar os poemas Canção do Exílio(1846), de Gonçalves Dias, e A tristeza (1836), de Gonçalves de Magalhães. O entusiasmo da primeira geração romântica promovido por Gonçalves Dias elevou o Brasil à categoria de terra com “mais amores” e “mais vida”, onde o sabiá aqui canta melhor e mais alto. As palmeiras se destacavam em seu verde exuberante, cor da esperança que se espalhava na propaganda positiva da nação soberana, recém-liberta do jugo colonial lusitano. Porém, a expectativa nas nuvens se colocou como mãe da decepção.

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva, do Observatório da Imprensa 

A sensação de eterno semear e a constatação de um amor e de um país não experimentados em sua plenitude levaram embora as ilusões dos poetas que, a exemplo de Gonçalves de Magalhães, arvorados no sombrio mal de século, não tinham mais fé na luz no fim do túnel. Todas as fichas foram assim depositadas no pessimismo. O otimismo ficou nu, com a mão no bolso: “Triste sou como o salgueiro/Solitário junto ao lago,/Que depois da tempestade/Mostra dos raios o estrago./(…)/Fatal lei da natureza/Secou minha alma e meu rosto;/Profundo abismo é meu peito/De amargura e de desgosto/À ventura tão sonhada,/Com que outrora me iludia,/Adeus disse, o derradeiro,/Té seu nome me angustia./Do mundo já nada espero,/Nem sei por que inda vivo!/Só a esperança da morte/Me causa algum lenitivo”.

De repente, a câmera do olhar corta para A Insustentável Leveza do Ser (1984), de Milan Kundera, e o cinza reinante até então se esvai. Entra um lilás, tipo o cantado por Djavan, caetaneando o que é há de bom, mesmo que a voz poética do tropicalista, na canção Rocks (2006), escorregue em tom de rancor e fúria: “Tu é gênia, gata etc./mas cê foi mesmo rata demais/meu grito inimigo é: você foi mor rata comigo/você foi concreta e simplesmente/rata comigo demais,/rata comigo demais/rata”. Ficamos aborrecidos com quem mexeu no nosso queijo. Instinto proprietário que faz da gente ratos de nós mesmos. Mistura de Patético Mickey com Esperto Jerry. Pobre demais resumir o mundo a uma ratoeira. Voltemos a Kundera e sua linda forma de poetizar o amor: “Tomas pensava consigo próprio que ir para a cama com uma mulher e dormir com ela são duas paixões não só diferentes como quase contraditórias. O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor (desejo que se aplica a um número incontável de mulheres), mas através do desejo de partilhar o sono (desejo que só se sente por uma única mulher).”

Nosso Fla X Flu performático, porém, deforma acompanhantes em seguidores, admiradores em cúmplices, colaboradores em servos. Como as relações de interesse interditam a espontaneidade do desejo? Em O importante é amar (1975), filme de Andrzej Zulawski, ouve-se esta pergunta: “Você me ama quanto?” Prostituta solteira, Ginger vendia apenas seus encantos; mulher casada, vendeu sua liberdade. O marido lhe responde: “Muito, muito”. O amor de graça, na real, costuma cobrar juros e juras! Contrariando o sistema, apresentam-se Jorge Vercílio e sua Monalisa (2009): “Não se prenda/A sentimentos antigos/Tudo que se foi vivido/Me preparou pra você/Não se ofenda/Com meus amores de antes/Todos tornaram-se pontes/Pra que eu chegasse a você”. Desprendimento e maturidade em versos esplendorosos, visto que o ciúme simboliza o cúmulo do instinto possessivo, com direito a desconfiança cavalar e paranoica a reboque.

Dilma Rousseff conseguiu quebrar o país

A paixão pelas extremidades faz a gente acreditar que viver entre tapas e beijos é sinal de equilíbrio amoroso. Acontece que em briga de marido e mulher não se mete o diálogo. “Falha a fala, fala a bala”, adverte Paulo Lins, em Cidade de Deus (1997). Informa o Instituto Avante Brasil que, em 2012, ocorreram 4.719 mortes de mulheres por meios violentos no Brasil: significam 393 mortes por mês, 13 por dia, mais de 1 morte a cada duas horas. O Brasil é o 7º país que mais mata mulheres no mundo. Por trás desta triste estatística, encontra-se a indiferença explosiva que perigosamente aciona atitudes intolerantes e crimes passionais. Em pensar que o feminicídio, crime praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, começa onde “falha a fala”, isto é, na violência simbólica sistematizada pelo machismo de plantão em detrimento das mulheres, até descambar para o extermínio misógino do público feminino. Basta acompanhar aviolência de gênero promovida sistematicamente pelos meios irresponsáveis de comunicação, quando se dirigirem à presidenta da República, Dilma Rousseff. A respeito, exemplificaremos o nosso parecer, a partir de duas grosserias, travestidas de opinião, que foram cometidas pelos colunistas Vicente Nunes e Ari Cunha, ambos do Correio Braziliense.

Vicente Nunes, no artigo “Virando pó” (Correio Braziliense, 27/10/2015), ignora solenemente o mérito administrativo de Dilma Rousseff à frente da gestão técnica que, dentre outras conquistas, ajudou a alavancar o êxito socioeconômico do país desde os tempos de Lula no comando da nação, projetando o Brasil como relevante referência na escala global, ao instrumentalizar os programas sistêmicos de combate à fome e a promoção da transferência de renda e da escolaridade, voltadas ao atendimento das classes mais populares e desassistidas. Porém, com o seguinte parecer ostensivo, o citado jornalista prefere jogar a Presidenta na cova dos leões, culpabilizando-a exclusivamente pela crise conjuntural que atormenta não só o Brasil, mas o mundo como um todo:

“A incapacidade do governo de chegar ao tamanho do rombo fiscal em 2015 é impressionante e só comprova como a máquina federal se acostumou com as manobras, as maquiagens e as pedaladas fiscais para esconder a situação das contas públicas. Sabe-se que o buraco é enorme e, se realmente for contabilizado por completo, pode ficar próximo de R$ 100 bilhões. Mas, independentemente do valor a ser divulgado e das justificativas que venham ser dadas, o certo é que Dilma Rousseff conseguiu a façanha de quebrar um país que, quando lhe foi entregue, crescia a 7,6% ao ano.”

Educar para a cidadania

Enquanto Vicente Nunes investe todas as suas fichas, ao chamar explicitamente Dilma Rousseff de administradora incapaz, contribuindo para a subalternização histórica da liderança feminina, o jornalista Ari Cunha, no artigo “Resumo da ópera” (Correio Braziliense, 27/10/2015), com requinte de crueldade, ofende e animaliza a Presidenta da República, chamando-a de “pata manca”. É estarrecedor verificar o tom virulento expresso pelo referido colunista do periódico distrital:

“Neste exato momento, a certeza geral é de que a permanência de Eduardo Cunha à frente da Câmara dos Deputados não vale três tostões furados. Outra certeza de momento é de que, mesmo faltando três anos para terminar o mandato, a presidente Dilma Rousseff é uma pata manca. Do mesmo modo, outra certeza a esta altura dos fatos, é de que boa parte daqueles políticos que viviam à sombra do Planalto, apoiando o governo em troca de pixulecos variados, está com os dias contados para seguir à degola da cassação.”

Isto não é uma reflexão “analítica”, nem muito menos “substancial”, conforme tipologia proposta pelo estudioso Stephen Toulmin, no livro Os usos do argumento (2001). Trata-se de uma atitude tirânica e discriminatória que mais parece fundamentar o veredito emitido por um inquisidor da Idade Média do que a avaliação sóbria de um jornalista que precisa ser responsável em promover, em termos plurais e democráticos, a opinião pública consistente e consciente.

Bem ao estilo bipolar, traduzido na popularesca expressão “morde e assopra”, o Correio Braziliense parece ter como procedimento editorial a cordialidade transbordante, conforme atesta os emblemáticos versos do poeta pré-modernista Augusto dos Anjos: “O beijo, amigo, é a véspera do escarro/A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Na mesma edição do jornal distrital, que contemplou o ímpeto espinafrador de Vicente Nunes e Ari Cunha, o editorial, em contrapartida, elogia o louvável mérito da proposta de redação do Enem, uma das páginas mais bonitas da história da educação brasileira:

“Poucos assuntos são tão comentados quanto a redação do Enem. O tema envolve universo muito maior que os milhões de candidatos que se submetem à prova. Avós, pais, irmãos, tios, amigos, todos participam do debate. O assunto abandona o escaninho dos especialistas e ganha visibilidade nacional. Trata-se de oportunidade não só de avaliar a habilidade de escrever, mas também de educar para a cidadania.

Graças e homenagens por todo o sempre”

A proposta do exame de 2015 serve de exemplo — a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Ao falar em persistência, fechou as portas para a negação do fato ou para teses que atenuem as ocorrências. Não só. Como um dos critérios do julgamento da redação é o respeito aos direitos humanos, os jovens precisaram partir do fato de que o problema existe e sugerir intervenção (outro critério) para solucioná-lo. […]

A violência machista é cultural e, por isso, vista com naturalidade por parcela significativa da sociedade. Há que reeducar a população. Nada mais adequado que levar o debate às salas de aula. Como disse Maria da Penha, que há quase uma década inspirou a lei que recebeu o seu nome, duas intervenções são necessárias. Uma: investimento na educação cidadã. A outra: políticas públicas aptas a enfrentar a tragédia que se perpetua através dos tempos. No século 21 poucos comportamentos soam tão extemporâneos quanto bater em mulher.”

A bipolaridade crônica em nossos afetos vem apresentando desdobramentos cruéis e passionais por conta de uma cultura maniqueísta que coloca a dinâmica amorosa em maus lençóis, fazendo-nos acreditar no velho clichê assim cantado por Carlos Cachaça: “todo amor no princípio tem sabor,/tem perfume, tem odor, que embriaga o coração/mas depois é uma taça incolor/que só contem amargor, dissabor e maldição”. Este sentimentalismo vitimizado é alienador, pois o amor, como expressão plena e sincera da alteridade, precisa ser reinventado a cada instante. Não só em nove semanas e meia, como recomenda aquele apimentado filme norte-americano, dirigido por Adrian Lyne, mas, essencialmente, em “nove dias de cultos a ti”, conforme brilhantemente sugere a escritora Cidinha da Silva, na crônica “Durga e a Senhora das Águas”, que integra o fabuloso livro Baú de miudezas, sol e chuva (2014):

“No primeiro [dia] te oferecei flores e água fresca e desejarei, em silêncio, que abras olhos e braços à sede que tens de mim./No segundo, o coro de colibris de Odé cantará o canto de amor que compus para ti./No terceiro te darei minerais, preciosos ao teu gosto fino: quartzo, ouro, diamantes, turmalinas./No quarto dia te permitirás ser ninada por meus dez braços./No quinto compreenderás que não existo sem ti./No sexto, explodindo de contentamento, a Lua criará mais uma fase, cheíssima de amor./No sétimo dia brindaremos às águas, com vinho branco de palma, da adega de Ogunjá./No oitavo dia Olodumaré e Shiva sorrirão ao nosso amor./No nono te beijarei a boca de ameixa, sorverei tuas águas de amora e dormirei em teu leito de lavanda/No décimo dia, o dia da vitória, teu ego morrerá de morte consciente e dobrarás os joelhos aos pés de Oxum, a fim de agradecer e acolher o amor mandado por ela, para te render graças e homenagens por todo o sempre.”

***

Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários

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