Nei Lopes – Além do samba? Pra quê?

Tempos atrás se publicou no Brasil um livro tentando provar as origens ameríndias do samba. Sem muito sucesso, é claro, principalmente entre os que conhecem, em línguas de Angola e do Congo, a voz samba com os significados de “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito”; “espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito do outro”, etc.

Um grande reforço à nossa opinião nos chega, agora, no livreto que acompanha o CD Música y Canto de las Comunidades Negras de Bolívia, de 1988, trazido por um amigo. Sobre o termo zemba, corrente no ambiente focalizado, diz o livrinho que é alteração de samba , palavra existente em diversas línguas congo-angolanas, sempre dentro do universo semântico da dança.

O samba é africano, sim, e está presente até na Bolívia, país de africanidade muito pouco conhecida. E muito antes de ganhar o alto estatuto de componente fundamental da identidade nacional brasileira, seu nome já circulava em várias regiões do país.

A tradição brasileira de danças em roda e caracterizadas pela umbigada, expressa ou sugerida, provém certamente dos povos do grupo Banto (da área cultural acima mencionada), majoritário na construção da cultura afro-brasileira. Essa tradição compreende toda uma família de danças aparentadas, que vai do carimbó paraense e do tambor-de-crioula do Maranhão – passando pelo coco do litoral nordestino e pelos sambas do Recôncavo e do médio São Francisco, na Bahia – até o jongo ou caxambu no sudeste brasileiro, notadamente no Vale do Paraíba. Onde houve negro banto, lá estão as danças de roda, com ou sem umbigada. E esse amplo espectro constitui as “danças do tipo samba”, assim agrupadas pela etnomusicologia.

Mário de Andrade, em suas pesquisas sobre o coco nordestino, informava que, em seu tempo, principalmente no Ceará e em Alagoas, os termos coco e samba muitas vezes se confundiam, pra designar a mesma expressão musical. Acrescente-se que escritores como Euclides da Cunha, em Os Sertões, e Aluísio Azevedo, em O Cortiço, descreveram o que então se entendia como samba.

Várias dessas formas rurais chegaram ao Rio de Janeiro, principalmente durante as migrações ocorridas nos cerca de 50 anos que se passaram entre a proibição do tráfico atlântico e a abolição da escravatura. E, chegadas à terra carioca, amalgamaram-se, tanto ao gosto, por exemplo, de migrantes bantos do Vale do Paraíba quanto de sudaneses e também bantos vindos da antiga Bahia e do seu Recôncavo, tomando no meio urbano, com o passar dos anos, novas e ainda mais variadas formas. Até constituírem o gênero mãe da nossa música popular.

O samba é, pois, fruto de ricas tradições afro. E, assim, em que pese sua gradativa desafricanização ao longo dos anos, ele permanece como um bem imaterial do patrimônio cultural nacional, cuja proteção, além de ser um imperativo constitucional, é um dever de consciência. Entretanto – muita gente se pergunta – o que será dessa tradição, nos tempos que se avizinham?

A indagação é pertinente, já que muita gente, até mesmo na área da cultura, costuma ver o samba como um primeiro degrau, velho, iletrado, pobre e periférico, que a música popular brasileira percorreu ou percorre até chegar às alturas do som global, anglo-saxão (mesmo cantado em português ou espanhol) e endinheirado (mesmo vindo dos guetos norte-americanos). E essa visão equivocada é a mesma que vê a arte tradicional, dita primitiva, como um estágio inicial pelo qual passou a criação humana até chegar ao esplendor da arte clássica europeia.

Só dentro dessa lógica marota é que se pode entender recente matéria jornalística cujo título dizia: “Seguindo a própria trilha, muito além do samba.”

Tal matéria tratava do lançamento pop de um jovem cantor que, durante algum tempo, à frente de um grupo de samba do universo da Lapa carioca, vendeu seu peixe como sambista, fez um nomezinho, e, agora, procura descartar-se do rótulo para ir “do rock ao tango”, essas formas tidas como de universo mais amplo.

Uma outra inquietação sobre o futuro do samba tem por motivo a satanização da cultura afro-brasileira por parte da truculento ativismo político-religioso que hoje forma nuvens sombrias no céu de nossa perspectiva cultural.

Então, a pergunta: como será o amanhã do samba, fora dos Ipods e smartphones, sem acesso à concessão de canais de radiodifusão, e no meio do fogo cruzado entre a cidadania hip-hop e o fundamentalismo gospel?

Talvez as urnas abertas a partir da noite de 3 de outubro nos deem uma ideia.

NEI LOPES É ESCRITOR E PESQUISADOR, AUTOR DE LIVROS COMO O NEGRO NO RIO DE JANEIRO
E SUA TRADIÇÃO MUSICAL

Fonte: Estadão

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