Liberdade de agressão, por Sueli Carneiro

A garantia da circulação da pluralidade de opiniões é um dos fundamentos da democracia. Dois casos exemplares ocorreram recentemente na mídia impressa em que formadores de opinião defenderam posições, no mínimo polêmicas, sem que os atingidos por elas tivessem o mesmo espaço para refutar. O primeiro é o caso do artigo “Cultura de bacilos” de Bárbara Gancia (Folha de São Paulo de 16/03) no qual a colunista critica a decisão do ministro Gilberto Gil de apoiar grupos comunitários envolvidos com o movimento hip hop como forma de promover, segundo o ministro, “novas formas de expressão da latente criatividade dos pobres do país.”

Por Sueli Carneiro, Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

A proposta do ministro não é inédita, consiste apenas em elevar ao nível de política pública federal experiências exitosas que vem sendo desenvolvidas por bandas de rap, grafiteiros e dançarinos do movimento hip hop em parceria com organizações da sociedade civil ou poderes públicos locais, que vem fazendo a diferença para a inclusão social de muitos jovens das periferias.

Do interior do movimento hip hop emergiram expressões musicais hoje consagradas, que colocaram um ponto de inflexão na indústria musical, como é o caso dos Racionais MCs que por meio de produções independentes de grande qualidade musical conquistaram a liberdade de produzir quando e como desejarem, sem se submeterem às imposições da indústria fonográfica e midiática para serem um fenômeno de vendagens no Brasil.

Como eles, outros nomes se afirmaram. O rap vem revitalizando outros gêneros musicais e impactando outras áreas da cultura nacional do que são exemplos, o documentário “Falcão – Meninos do Tráfico” de MV Bill ou o filme Antônia do qual, além das cantoras protagonistas, participa também Thaíde, um dos precursores do movimento hip hop no Brasil.
Para além do impacto na cena cultural do país, o movimento hip hop fez emergir lideranças juvenis que tem no rap, no grafite e no break – o tripé que estrutura a cultura hip hop – os veículos para a mobilização de jovens para a reflexão sobre os temas que mais afligem o seu cotidiano, como a violência, as drogas, a exclusão social, o exercício protegido da sexualidade, paternidade e maternidade responsáveis, a discriminação racial. Atuam em escolas da rede pública e privada, em faculdades e presídios. Alguns se tornaram gestores de políticas públicas inclusivas para a juventude; outros estão fazendo carreiras universitárias ou mantêm-se no protagonismo juvenil, aprofundando o seu compromisso com os direitos humanos e a inclusão social. Para muitos, a participação no movimento hip hop funcionou como um antídoto que lhes permitiu escapar do caminho mais fácil da marginalidade social.

 

No entanto, no artigo citado de Gancia, a colunista considera desperdício de dinheiro público investir nesse protagonismo por entender que hip hop não é cultura, que o rap é lixo musical sugerindo, como ela diz, que “tais gênios musicais” seriam ligados ao tráfico de drogas. O que lhe dá autoridade para definir o que seja ou não cultura? De onde ela extrai o direito de desqualificar, de uma penada, uma expressão cultural forjada na resistência de jovens à exclusão social por meio da qual eles se afirmam como produtores culturais e agentes de cidadania?

O segundo caso é a entrevista do cartunista Jaguar (Folha de São Paulo de 17/03), que a pretexto de criticar a idéia de “politicamente correto, diz que os humoristas hoje estão muito certinhos porque com “essa coisa de não poder chamar crioulo de crioulo, (…) criou-se um limite e, se a gente passa um pouco, leva pito. Eu não levo mais porque sou velho e sou o Jaguar. Aí as pessoas dizem: “Ah, é o Jaguar, deixa ele”.

Jaguar é o mesmo que declarou orgulhar-se de ter destruído a carreira de Wilson Simonal acusado por ele e a turma do Pasquim de ser dedo-duro do regime militar o que determinou o ostracismo a que Simonal foi submetido até o fim de sua vida. Por iniciativa da Ordem dos Advogados de São Paulo foi promovida, tardiamente, a sua reabilitação moral quando foi provado não haver nenhum indício que sustentasse aquela acusação. No entanto diante dessa evidência a reação de Jaguar foi: “Ele era tido como dedo-duro. Não fui investigar nem vou fazer pesquisa para livrar a barra dele. Não tenho arrependimento nenhum.” O choque de tal declaração provocou a seguinte pergunta do jornalista Giulio Sanmartini: “(…) onde ele [Jaguar] buscou o direito de ser acusador e juiz e destruir um homem?”

São exemplos de pessoas públicas que se comprazem-se em exercitar um poder de nomear e julgar, derivado exclusivamente de uma posição de hegemonia de classe e de raça que lhes assegura a circulação privilegiada de suas idéias e posições, que dispensam a si mesmos o conhecimento efetivo sobre o que opinam, sentindo-se garantidos por imunidade ou complacência em caso de erros de avaliação. É daí que advêm o seu poder de acusar, julgar e destruir.

Para rappers, breaks, grafiteiros, considerados “bacilos” e negros tratados como objeto preferencial do deboche de humoristas, resta indignarem-se na página dos leitores dos jornais ou exigirem um direito de resposta que raramente é ofertado.

 

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