Centro Cultural Correios traz 120 obras sobre o Rio de Janeiro de Debret
por Rosane Pavam, do Carta Capital
Avistar o Rio de Janeiro a partir do convés, as ondas regulares a embaralhar o mar, e a detalhada, suave cadeia de montanhas ao fundo, significava iluminar-se de beleza naquele 1816. O pintor francês Jean-Baptiste Debret esboçava esse vislumbre em papéis de rascunho, enquanto sua embarcação circundava a Baía de Guanabara. O artista vinha a trabalho, mas também em fuga íntima, ansioso por se distanciar da trágica morte de seu único filho e do desmantelamento do império napoleônico, para o qual atuara posicionado no mais alto degrau da hierarquia da arte. Pintor de eventos históricos, ele aceitara fazer idêntico serviço para a corte local, mas, principalmente, dentro da Missão Artística Francesa, comprometera-se a atuar pela Academia Imperial de Belas Artes, cuja fundação ocorreria muito tempo depois do combinado, em 1826.
Debret mal sabia do Brasil. Na chegada, impressionara-se com a casa de estilo colonial que lhe coubera habitar no Catumbi e decidira representá-la em uma primeira cena urbana. Mais que isso, na pequena aquarela, desenhava a si próprio, paleta e pincéis no parapeito da janela, a observar dois escravos e um guarda à porta. Nada mais distante de seu ofício de pintor dos eventos oficiais do que essa descrição da alma das ruas. Os desenhos e as aquarelas, às vezes monocromáticos, às vezes coloridos, feitos na frente e no verso dos caros papéis de serviço, reproduziam em pormenores o que ele via. Uma montanha de aquarelas em um tamanho quase padrão, 16 centímetros por 22, parecia não dar conta do paradoxo diante do artista. O Brasil era urgente, inacreditável. Debret queria ser visto como um historiador de sua estranha beleza e de seu horror social, dos quais os europeus tinham parca notícia.
“Tudo assenta, pois, neste país, no escravo negro”, escreveu em um dos três volumes de sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, editados na França em 1846, apenas cinco anos depois de ter deixado o País no qual permaneceria por inacreditáveis 15. Ele julgava as palavras tão essenciais quanto os desenhos e procurava ser direto: “Na roça, o escravo rega com seu suor as plantações do agricultor. Na cidade, o comerciante fá-lo carregar pesados fardos. Se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor. Mas, sempre mediocremente alimentado e maltratado, contrai às vezes os vícios de nossos domésticos, expondo-se a castigos públicos, revoltantes para um europeu”.
Malgrado a terrível realidade, Debret a descrevia por meio da arte com as tintas da delicadeza, como se pode observar em O Rio de Debret, exposição no Centro Cultural Correios de São Paulo, que exibirá, até 25 de janeiro, 120 obras do artista pertencentes à coleção Castro Maya. Algumas delas não foram produzidas diretamente pelas mãos do artista, antes construídas a partir de seus desenhos, transformados em gravuras por litógrafos impressores da época. Por quase um século, essas obras permaneceram longe dos olhos brasileiros, mas, depois da Semana de Arte Moderna e das discussões sobre a nacionalidade, pareceu urgente que regressassem ao País. Em 1940, o colecionador Raymundo Ottoni de Castro Maya adquiriu 500 originais na França e os repatriou, além de editar um inédito, o quarto volume da Viagem Pitoresca, a partir das gravuras que o artista deixara de publicar.
As representações de Debret contidas nos originais são realistas e complexas. Almejam por descrição de arquiteturas, comportamentos e usos em vários planos da representação, como observa a historiadora Anna Paola Baptista, curadora da exposição e do acervo do artista no Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro: “O sistema que ele usa para essas representações guarda semelhanças com aquele da pintura histórica, mas tem suas particularidades”, diz. “Debret sai à rua com um caderno de rascunho e faz esboços rápidos. Observa muito, mas a cena que vemos, embora nos pareça plausível, não ocorreu necessariamente daquele modo em tempo
real. Ele pode, primeiramente, ter esboçado aquele grupo de vendedores de bolinhos e, em outro dia, a vendedora de angu. Mas, na hora de fazer a aquarela com esses personagens, eventualmente combina as cenas, como se tivessem ocorrido de maneira simultânea.”
A historiadora não acredita que o artista visse essas representações como as mais importantes em sua trajetória. “Debret foi criado em ambiente artístico com organização muito rígida e entendia como seu apogeu a pintura histórica”, argumenta. “Ocorre que, passado o tempo dele, nós o valorizamos pelo que produziu longe da corte.” A exposição que ela organiza é dividida em seis núcleos temáticos, em torno das paisagens iniciais, dos marcos arquitetônicos e da pintura histórica. Em Repórter do Cotidiano estão as aquarelas nas quais a escravidão é desvelada em pormenores.
Vendedor de Flores e de Fatias de Coco (1829), por exemplo, ocupa-se em detalhar a hierarquia social a que se submetiam os escravos, divididos segundo uma atribuída importância. Um deles, descalço, mas bem-vestido, está autorizado a vender flores à ama. Mas não é ela quem paga pelo serviço, antes sua primeira escrava, com sapatos e adornos. Alinhados atrás encontram-se os serviçais de menor importância, descalços. E, ao fundo, a cidade descortina-se com personagens protegidos por capuzes, um deles a esmolar sob o sol. Para Debret, o Rio era notável pelo calor, assim como pela tortura dos negros e a quase ausência de mulheres brancas na rua, normalmente figuradas por seus braços que atravessam as janelas, em busca de adquirir produtos dos ambulantes.
Na aquarela Castigo de Escravo Que se Executa nas Praças Públicas (1826), o detalhismo impressiona. Amarrado ao tronco, o supliciado estica os pés em razão de uma contração muscular que eleva sua altura. E em Loja de Rapé (1823), os “tigres”, assim denominados porque sua pele, a evocar aquela do animal, vivia manchada pelos dejetos humanos por eles transportados, compram tabaco enquanto o vigia branco paquera uma escrava, em uma situação aparentada à normalidade da vida europeia. Mestre irônico, Debret não perdoa os brasileiros pela arrogância e desumanidade, embora jamais tenha escrito uma linha contrária à escravidão aqui instituída. E por força de sua arte contundente talvez nem mesmo precisasse.