A chave das mulheres

Força de trabalho extremamente relevante, as mulheres do campo vivem graves desigualdades de acesso aos recursos produtivos. Reverter essa situação significa não só a diminuição da fome no mundo, como a melhora das relações familiares e a interrupção do ciclo da pobreza e da violência

Por Juana Lucini – Assessora de Políticas e Advocacy – OXFAM

Uma proposta alternativa ao modelo dominante de produção e consumo de alimentos tem necessariamente que incorporar uma perspectiva feminista. As mulheres do meio rural desempenham um papel-chave na agricultura familiar, pois são as principais produtoras da comida para consumo próprio. São as responsáveis por trabalhar a terra, manter as sementes, coletar as frutas e verduras, conseguir água, cuidar dos animais. A agricultura familiar, por sua vez, é a espinha dorsal da segurança e da soberania alimentar.

O problema atual não é a quantidade produzida de alimentos, mas a impossibilidade de acesso para milhões de pessoas. O mercado é concentrado na produção empresarial, em cadeias longas voltadas à exportação, monopolizadas por algumas multinacionais. Hoje, quatro empresas controlam 50% do setor de comercialização de sementes e 75% dos agroquímicos (dados do relatório Cresça-Oxfam, 2012). Os alimentos são ofertados, mas as pessoas marginalizadas não têm como adquiri-los. Além disso, entre 30% e 50% de todo o alimento cultivado é desperdiçado.

Enquanto distribuição e autonomia produtiva estão entre os principais gargalos da segurança alimentar, as mulheres do campo vivem um paradoxo. Representam uma força de trabalho extremamente relevante, mas vivem graves desigualdades de acesso aos recursos produtivos. Empoderá-las significa destravar um manancial de benefícios difusos que passa não só pela diminuição da fome no mundo, como pela melhora das relações familiares, vida digna para os filhos e interrupção do ciclo da pobreza e da violência.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), as mulheres são, em média, 43% da força laboral camponesa nos países em desenvolvimento – cerca de 20% na América Latina e 50% na África subsahariana e sudeste asiático. No entanto, na América Latina, menos de 20% das terras são propriedade de mulheres, maior proporção verificada entre todas as regiões do planeta. Na Oceania, a marca desce para menos de 5%, ou menos de 10% no norte da Ásia e oeste africano. O acesso à terra é o principal recurso e empoderamento que as mulheres podem ter.

O relatório “The State of food and agriculture” (FAO, 2011) observa que, se as mulheres tivessem acesso aos mesmos recursos produtivos que os homens, poderiam aumentar a sua produção em torno de 30%, o que acarretaria um aumento de 4% no total produzido pelos países e diminuiria a fome no mundo em aproximadamente 17%. Dados de 20 países, analisados pela FAO, indicam que as famílias chefiadas por mulheres no meio rural tendem a estar em mais grave situação de pobreza, embora não seja possível generalizar os dados.

A Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial definiu o conceito como “acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer necessidades dietéticas e preferências alimentares, bem como proporcionar uma vida ativa e sã”. O primeiro compromisso da Declaração de Roma é a garantia de um ambiente político, social e econômico propício para erradicar a pobreza e para uma paz duradoura, baseada na participação plena e igualitária de homens e mulheres. O objetivo 1.3 expressa a importância da igualdade entre os sexos e de dar plenos poderes às mulheres.

Assim, todo movimento pela segurança e soberania alimentares almeja incluir a visão das mulheres: o que elas pensam, sentem, como poderiam ter seu trabalho valorizado, como permitir que aumentem sua renda familiar, como permitir que tenham mais tempo para elas mesmas, para seu bem-estar, para o lazer, para o trabalho comunitário, para sua educação e a dos filhos.

Uma discussão atual é a economia do cuidado, que inclui o trabalho feminino não remunerado nas tarefas domésticas, no cuidado com as pessoas dependentes da família e com sua alimentação, o cultivo para o autoconsumo, a comercialização dos excedentes, o trabalho reprodutivo, produtivo e comunitário, que ocupam a esfera privada. Considerando-se que o trabalho agrícola tradicional está primordialmente nas mãos dos homens, as mulheres se inviabilizam na produção de renda, o que as torna invisíveis tanto para a economia como para as políticas públicas.

Além disso, mulheres sofrem diferentes tipos de violência. A Via Campesina acaba de lançar a campanha “Basta de violência contra as mulheres” que apresenta as diferentes tipologias: violência social (quando a riqueza se concentra na mão de poucos); violência doméstica; violência psicológica; violência moral; violência econômica e patrimonial; exploração sexual; tráfico de mulheres; feminicídio; violência institucional; violência sexual.

Outro problema recente é a feminização do trabalho agrícola assalariado. São as mulheres que exercem as atividades menos qualificadas, como a colheita e o empacotamento. Como resultado, são elas o componente principal dos fluxos migratórios, nacionais e internacionais, que provocam desarticulação e abandono das famílias, das terras e dos processos de produção. O êxodo ainda aumenta a carga familiar e comunitária das mulheres que ficam, causando mais desequilíbrio entre os gêneros.

Os agricultores familiares sofrem restrições de acesso ao crédito em todos os países, mas a proporção de mulheres contempladas é até 10% menor que a dos homens. Também há evidência de que as mulheres têm menos tendência a usarem agrotóxicos ou sementes transgênicas. Ainda assim, as mulheres são muito expostas à contaminação por agrotóxicos, seja porque usam nas hortas por elas produzidas, seja porque ajudam os homens na pulverização ou porque lavam as suas roupas contaminadas.

As políticas que podem ser adotadas para diminuir a diferença de gênero no meio rural consistem em eliminar a discriminação no acesso aos insumos produtivos. Esse objetivo atravessa uma miríade de áreas de atuação, tais como: melhores oportunidades educacionais, financiamento rural sensível ao gênero – no caso do Brasil, flexibilização das regras do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); investimento em aspectos nutricionais e de saúde da mulher; eliminação das discriminações legais e da insegurança jurídica no acesso à terra pelas mulheres; promoção da participação social feminina e certificação ambiental participativa dos alimentos por elas produzidos.

Uma proposta alternativa ao modelo dominante de produção de alimentos implica não só romper o modelo capitalista de produção, mas também o sistema patriarcal, reconhecendo e garantindo o papel das mulheres na cadeia produtiva. Para alcançar nossos objetivos, temos que tecer alianças e construir conjuntamente um movimento amplo e forte que defenda essa – a nossa – agenda.

 

 

 

Fonte: Vitae Civilis

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