Em entrevista exclusiva ao Ká entre Nós, Edilson Marques da Silva Miranda, professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP), autor de livros sobre a construção da identidade negra, fala da participação da mídia e da literatura na formação da autoimagem do povo negro. Destaca também o preconceito velado na sociedade brasileira.
Ká entre Nós: Por que ainda hoje, século 21, setores da sociedade brasileira permanecem (ainda que menos) classificando homens e mulheres negras como cidadãos de 2°categoria, ligados à pobreza e marginalidade? O senhor observa isso? Qual a origem dessa percepҫão?
Edilsom Marques: Sim. Infelizmente, esta continua sendo uma realidade em nosso meio. A população negra continua sendo vista como inferior. Varias literaturas ao longo do tempo tem reforçado esta ideia, de que os homens e mulheres negros são inferiores dentro da sociedade. A escravidão das pessoas oriundas do continente africano se deu com base na argumentação desta inferioridade. Mesmo após a abolição da escravatura no Brasil, ocorrida a pouco mais de 100 anos, não houve a desmistificação desta ideia. No processo de construção do Brasil, a presença africana foi fundamental, mas esta contribuição tem sido negada sistematicamente. A ideia que fica patente em nossa sociedade, é que as pessoas negras tem o seu lugar previamente delimitado dentro da sociedade, sempre aliado a pobreza, marginalidade e a ignorância.
Ká entre Nós: O senhor considera que a mídia seja também responsável pela manutenção dessa percepҫão? De que modo?
Edilsom Marques: A mídia tem um papel fundamental para perpetuar a idéia de inferioridade da população negra. Nas novelas brasileiras, sempre tem reserva espaço para os atores e atrizes afro descendentes nos papeis de escravos e atividades subalternas. Em 1975 na novela Pecado Capital escrita pela Janete Clair, trouxe pela primeira vez um psiquiatra negro, interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Nesta história, havia apenas um único personagem negro, totalmente desprovido de vínculos familiares. Vinte anos depois, em 1995, na novela “A Próxima Vítima”, escrita por Silvio de Abreu, pela primeira vez numa novela brasileira, é apresentado um família negra de classe média.
O pai era o ator Antonio Pitanga, a mãe a atriz Zezé Motta e uns dos filhos era o falecido ator Norton Nascimento. Quase 10 anos depois, em 2004, a novela “Da Cor do Pecado”, escrita por João Emanuel Carneiro, traz como protagonista uma atriz negra, Tais Araujo. Ela desempenha um clássico papel, onde a mulher negra sedutora desestabiliza as relações e o casamento do casal branco. As telenovelas, ultimamente, tem se preocupado em fazer o chamado “merchandising social”, onde defendem uma bandeira social. Se empenham em mostrar o problemas e enfatizar as soluções. Já foi enfocado a questão da violência contra mulher, alcoolismo, doação de medula óssea, deficiências físicas e visuais, pedofilia, cleptomania, homossexualismo, gravidez psicológica, analfabetismo entre outros. Infelizmente, ainda não entrou na lista de prioridades da teledramaturgia brasileira o tema do racismo, mostrando o problema e dando ênfase nas soluções.
Ká entre Nós: Como em sua avaliação, a mídia afeta a imagem do afrodescendente no Brasil, e sua auto estima?
Edilsom Marques: A mídia cria uma imagem de normalidade do país, dando uma idéia de quem é o brasileiro comum. Conforme o estereótipo reforçado pela mídia brasileira, os afro descendentes não fazem parte do perfil do brasileiro comum. É muito comum, uma criança negra se sentir um alienígena, porque ela não se vê representada em nenhum espaço na sociedade.
Nos livros didáticos tem total ausência de pessoas negras, e quando aparece, está ligada a escravidão e situações subalternas. Nas telenovelas ainda há pouca presença de personagens negros. É muito importante para os mais jovens se espelharem nas figuras de destaque dentro de uma sociedade, para que possam traçar seus objetivos e sentirem segurança nos espaços sociais que podem e devem ocupar. Ainda constitui-se a população negra no Brasil, cada vez mais ampliar os espaços de atuações. Mesmo o país, tendo uma população de mais de 50% de negros e pardos, ainda parece que a população negra é uma “estranha no ninho”, como se fosse uma legião de estrangeiros sem direito de gozar de plena cidadania dentro do seu próprio país. Mas, por outro lado, a história é dinâmica, e a cada dia novos desafios são enfrentados e superados. Ainda temos um longo caminho a ser percorrido, na reconstrução de uma auto imagem, cada vez mais positiva, dos afro descendentes no Brasil.
Fonte: Ká entre nós