A infância é uma construção histórica. O mundo da criança nem sempre existiu. Por muito tempo não houve separação entre o mundo infantil e o mundo adulto, estes se resumiam em apenas um. Desta forma a criança não era detentora de direitos específicos as suas individualidades.
No período Renascentista “nasce” o sentimento da infância, porém este sentimento não era uniforme e homogêneo. Salienta-se que, na maioria das vezes, o sentimento da infância estava “reservado” às elites, que dispunha dos meios necessários para garantir tratamento diferenciado com saúde, educação e cuidados para com os seus filhos. A classe pobre não podia gozar deste sentimento, haja vista que necessitava que seus filhos, tão logo conseguissem se mover sozinhos, a ajudasse nas tarefas e no trabalho<1>. Kramer (1995) nos aponta que a inserção social diversa da criança impõe diferentes concepções de infância. Assim, é impossível universalizar este conceito. “Sendo essa inserção social diversa, é impróprio ou inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea, ao invés de se perceber diferentes populações infantis com processos desiguais de socialização.” (Op. cit., p.15)
No Brasil também havia um paradoxo entre a infância dos filhos das elites e a infância da criança pobre.
A criança negra sofreu as mais duras penas impostas pelo sistema escravista. Ela não era sujeito de direitos e por vezes, nem mesmo de piedade. Eram vitimas da mortalidade infantil devido às precárias condições que eram submetidas pelos seus donos. Tinham o seu “direito” de amamentar cerceado, pois, em muitos casos, suas mães eram alugadas ou cedidas para servirem de ama-de-leite para crianças brancas. Tão logo se tornassem “úteis” eram obrigadas a começar efetivamente o trabalho compulsório. As negrinhas e os negrinhos eram brinquedinhos para as crianças brancas e até mesmo para o adulto.
Assim era a vida da criança negra de 0 a 6 anos: negação, não-ser, “peça” temporariamente inútil…
A situação não mudou quase nada com a promulgação da Lei do Ventre Livre, que estabelecia que seriam livres os filhos dos trabalhadores escravizados nascidos no Brasil a partir da data de sua promulgação.
Art. 1o: Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.
§1o: Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
Conforme podemos observar na letra da Lei, os senhores donos das mães escravizadas eram obrigados cuidar dos ingênuos, como eram chamados os “beneficiários” desta lei, até os oito anos de idade. Porém esses cuidados não existiam, a criança continuava acorrentada ao sistema escravista, pois não há como ser livre com pais escravizados. Ainda por cima, a criança livre tinha que trabalhar para o senhor até os 21 anos, para pagar a sua libertação.
Esta lei também era responsável pela desestruturação da família negra, pois quando as mães eram vendidas somente os filhos “beneficiários” desta lei podiam acompanhá-la.
Uma outra face perversa das conseqüências desta lei: muitos senhores abrigavam as mães a abandonarem os seus filhos ou entregá-los à Roda dos Expostos, instituição que atendia crianças abandonadas. O índice de mortalidade nesta casa era altíssimo, de cada 100 pessoas que entravam, 80 morriam antes de completarem um ano.
A abolição oficial da escravatura pouco, ou quase nada, mudou na vida das meninas e meninos negros. Estes continuaram sendo os parias da sociedade, “cidadãos” sem voz, impedidos de usufruir a infância.
Fonte: Negreiros urbanos