Grupos transexuais lutam para trazer à tona discussões de demandas que consideram urgentes e que vivem à margem dos movimentos sociais
Por Danilo Gonçalves e Luisa Cardoso, do Carta Capital
Em junho, enquanto 26 milhões de pessoas mudavam suas fotos de perfil no Facebook em comemoração à aprovação do casamento homoafetivo pela Suprema Corte dos Estados Unidos, um outro movimento digital iniciava sem o mesmo colorido, em menor escala e sem dados oficiais de alcance.
Com filtro nas cores azul, branco e rosa, grupos transexuais se manifestaram em uma corrente paralela para chamar a atenção a pautas que nem sempre são prioritárias em campanhas maiores. Apesar de estarem ligados aos movimentos LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênero), eles alegam que suas demandas são urgentes, e que vivem ainda mais à margem dos movimentos.
Sem representatividade midiática, o guarda-chuva das transmasculinidades agrega diversas variantes de gênero – todos os entendimentos de gênero masculino não baseados no órgão genital.
Ao mudar sua foto para a bandeira do movimento trans, Thomas Fernando, 21 anos, deu seu recado: “Enquanto vocês estão aí comemorando uma vitória que nem do País é[no Brasil, o casamento homoafetivo já é legalizado], morre travesti todo dia (…). Pessoas trans não têm direito a estudo, a trabalho, a educação, a família, a respeito, nem sequer ao nome. Nos é negado o direito de existir (…). Ainda estou aqui lutando para ter meu nome reconhecido e pra não morrer num banheiro público qualquer”.
A CartaCapital, Thomas ressaltou que a decisão americana é, sim, um grande avanço, mas que ao mesmo tempo exclui muitas pautas da militância transexual. “Eu não sou contra, acho inclusive que deve ser celebrado, porque os EUA vão abrir jurisprudência internacional, vão encaminhar outros países. Só que as pessoas trans continuam sem mobilizar nada”, justifica.
Thomas está em São Paulo há um ano e meio, desde que chegou para estudar Letras na USP. É professor de inglês particular, mas relata ter dificuldade em conseguir um emprego fixo por causa da aparência e da identidade de gênero. “Não dão nenhuma desculpa, a vaga simplesmente desaparece. Dizem que foi preenchida”, relata.
Ainda que tenha pesquisado muito para se identificar como um homem trans, Thomas afirma que sempre teve muito clara sua identificação com o gênero masculino. Segundo ele, desde criança as pessoas faziam leitura social masculina a seu respeito.
O descolamento da causa ‘T’ da militância LGBT, segundo ele, é causado pela “genitalização”. “O que você mais vê em grupos de homens gays são falas sobre o tamanho do ‘pau’. Outra questão é que a maioria dos gays precisa gritar aos setes ventos que tem nojo de ‘buceta’. Então, quando você fala que é um homem trans, gay ou bissexual, você já é preterido sexual e afetivamente por homens cis [em resumo, pessoas cujo gênero é o mesmo designado no momento do nascimentos] gays”, analisa.
Alexandre Peixe dos Santos, 41, ou Xande, como é conhecido, se reconheceu como homem trans há seis anos, quando começou a tomar hormônio. Deixou a presidência da APLGBT (Associação da Parada do Orgulho LGBT), em 2010 após dois anos no cargo e oito na organização da maior passeata da América Latina pela causa, e hoje é membro do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade).
Xande também optou por colocar o filtro da bandeira trans em vez do da bandeira mais colorida no seu perfil. “Se sou um homem trans e caso com uma mulher heterossexual, é uma união homoafetiva? Para mim, não. Isso desconstrói a minha luta“, explica. Militante, afirma que os movimentos trans independentes nem sempre andam juntos das causas LGBTT. “Quando se diz lutar pelos direitos humanos, creio que a parceria é sempre bem-vinda, mas, em casos específicos, a luta é à parte mesmo”.
Ainda que apoie a união das frentes, Xande revela que um debate importante para causa trans, a Lei da Identidade de Gênero, segue sem diálogo profundo dentro da militância LGBTT. “Particularmente porque não interessa muito a eles”, critica.
Recentemente desarquivada pelos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) e inspirada no projeto argentino recém-aprovado, a Lei da Identidade de Gênero prevê, entre outros pontos, facilitar cirurgias de mudanças de sexo pelo SUS e a troca do nome nos documentos oficias a travestis, transexuais e transgêneros. A proposta é analisada por quatro comissões temáticas da Câmara dos Deputados para ir a Plenário.
Não existem dados específicos para esse grupo em grande parte, afirma Thomas, porque a identificação de gênero só pode ser confirmada pela própria pessoa. “Vemos muitas matérias de jornais chamando travestis pelo gênero masculino, isso quando não se usa o pejorativo ‘traveco’”, critica.
“Veja levantamentos de números de assassinatos que circulam por aí. Você encontra quantos LGB foram assassinados, mas e as pessoas trans? Não se trata de um descolamento do LGBTT, mas um movimento paralelo para que assuntos e políticas específicas tenham mais enfoque”, ressalta Xande.
Uma rara pesquisa da ONG Transgender Europe (TGEU), de 2014, revelou que 226 pessoas trans foram assassinadas por crimes de transfobia nos últimos 12 meses. Só no Brasil, foram 113 homicídios.
E, na mesma semana em que o Facebook disponibilizou o aplicativo para deixar a foto com as cores do arco-íris, os dois policiais responsabilizados pela morte da travesti Laura Vermont, em São Paulo, foram soltos. “Você não via nada sobre o assunto, só um monte de bandeira colorida”, pontua Thomas em tom mais áspero.
Para ele, a militância digital é válida, mas não há uma unidade em manifestações de rua, enfatiza, por direitos sociais das minorias no Brasil, como aconteceu com negros e gays nas décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos. “Minha questão é que as pessoas se lembram de comemorar, mas não estão no dia a dia para lutar por isso”, pontua.
Militante do tempo em que nem existiam redes sociais, Xande classifica que a discussão digital como “bem complicada”. “Sou de uma época em que os debates eram feitos cara a cara, discutíamos horas e horas até chegar a um senso comum. A importância das redes sociais é evidente, o alcance é infinitamente maior. Porém, se as informações forem equivocadas, há um problema.”
Em contrapartida às ressalvas de Thomas e Xande, Samuel Silva, 22 anos, em pleno processo de transexualização masculina, usa justamente o Facebook para relatar seu dia a dia e pensamentos sobre a causa trans na página ‘Um homem trans casperiano’. A decisão em criar uma página veio da necessidade de dialogar com a frente LGBTT da Faculdade Cásper Líbero, onde estuda Publicidade e Propaganda, e para desabafar sobre questões que até hoje nem os pais sabem.
Paulistano nascido e criado na zona leste, Samuel carrega uma história de muitas dificuldades. De família cristã, nunca teve abertura para falar com os pais sobre sua sexualidade. Aos oito, foi estuprado por garotos mais velhos na área de recreação do seu prédio. Um novo abuso aconteceu por volta dos 12. “Fui empurrado de volta para o mundo feminino”, conta, sem segurar a ansiedade. “Em casa, era muito repreendido, principalmente pela minha avó, para que eu tivesse mais comportamentos femininos e parasse de andar com os meninos.”
Durante o período de descoberta na adolescência, Samuca enfrentou sozinho a anorexia até que, aos 17, começou a se automutilar. Foi internado cinco vezes em clínicas psiquiátricas. Em uma dessas internações, conheceu uma mulher trans. “O discurso dela me era familiar, eu tinha essa relação com meu corpo, quando me vestia com roupas femininas, sentia que estava me ‘travestindo’ de algo que não era”, relembra com um sorriso sobre o momento em que se encontrou e passou a se entender como homem trans.
Ao sair da clínica, o agora trans casperiano foi adicionado a diversos grupos de meninos trans no Facebook pela nova amiga. Ele comentou que esses fóruns de discussão sobre transexualidade costumam ser muito fechados, justamente pela violência à qual esses meninos podem ser expostos. Grato à amiga, ele comemora tê-la conhecido. “Nesse momento, comecei a exigir que as pessoas me chamassem de Samuel ou Samuca”, ri.
De um ano para cá, Samuel pesquisou sobre o processo transexualizador, entrou na fila do SUS para começar a tomar hormônio masculino e, em 5 de janeiro passado, tomou a primeira dose de testosterona. “Começaram a crescer pelos e minha voz já mudou. Quero que cresça barba e que minha voz engrosse mais”, torce, à espera também da cirurgia de retirada das mamas, prevista para acontecer em setembro.