por: Douglas Belchior
A sociedade brasileira vive, por mais de cinco séculos, uma experiência muito peculiar de formação. A existência prática da “luta de classes” inundou todo o continente e, em especial no Brasil, alimentou-se de um regime escravocrata que durou mais de 350 anos. A formalização do fim do regime de escravidão em 1888 tornou o Brasil o último país do mundo a substituir o trabalho escravo pela mão-de-obra livre. Essa mudança tardia, quando a própria escravidão moderna já era um anacronismo absurdo, marcou profundamente a estrutura da sociedade brasileira, deixando em sua formação social marcas, vícios e restos que nos atingem ainda hoje. Sua permanente influência negativa (nos níveis econômico e ideológico) moldou o comportamento da sociedade brasileira, especialmente a camada historicamente ocupante do aparelho de dominação política.
O Brasil tornou-se independente sem abolir o trabalho escravo e aboliu a escravidão ao mesmo tempo em que manteve o latifúndio. Este misto de avanço e atraso, de modernização e retrocesso comprometeu de maneira irreversível o desenvolvimento do país. Desde as vésperas da inevitável abolição até cerca de três décadas seguintes, as elites deste país (que se tornariam elites republicanas) investiram macicamente em uma política de “embranquecimento” da população brasileira, por meio do estímulo e financiamento das imigrações européias. O ideário colonial justificador da escravidão encontra, então – na nova sociedade de classes tupiniquim, fundamentos a partir de teorias científicas racistas de origem européia que, por sua vez, tornaram-se hegemônicas nas academias, universidades e no meio do poder político entre finais do século XIX até a década de 1930.
Esse processo condenou a população africana e seus descendentes à barbárie. O racismo presente nas relações sociais fortaleceu estereótipos, preconceitos e um estado de discriminação permanente e praticamente irreversível nestes 121 anos de pós-abolição.
O capitalismo brasileiro com suas políticas universalizantes foi incapaz de diminuir o abismo social que separa brancos e não-brancos. Ao contrário, o ideário da democracia racial, das relações paternais e conciliatórias e da égide da miscigenação – apadrinhado por Gilberto Freire, contribuiu para a escamoteação do debate racial. E não por acaso – uma vez que, ao adotar a democracia racial como elemento fundamental das relações sociais num país de herança escravocrata tão peculiar, anula-se a leitura de conflito de classe presentes na gênese da formação da sociedade brasileira: senhor branco versus escrava/o negra/o.
Com o fim da escravidão, o advento da república, da industrialização e do trabalho livre o conflito de classes é travestido em modernas dicotomias: “burguês versus proletariado”; “patrão versus operário”; “latifundiário versus camponês”. E hoje, mais do que nunca, é preciso perceber que reconhecer outras dicotomias e conflitos existentes em nossa sociedade potencializa a luta classista: “brancos versus negras/os”; “homens versus mulheres”; “heterossexuais versus homossexuais”; “sulistas versus nordestinos”.
UNEafro-Brasil – uma alternativa de luta negra, combativa e socialista.
A UNEafro-Brasil se apresenta como uma organização do movimento negro, com consciência de classe e que agrega militantes da causa anti-racista, das mulheres, da diversidade sexual e do combate a todos os tipos de opressões. O trabalho político parte da reflexão de que a luta contra o racismo e todas as formas de discriminação deve se unir a luta contra a concentração de renda e de poder. Para combater o capitalismo, escolhemos lutar contra o racismo. Nesse sentido nossa atuação se dá através da ação comunitária e da organização de núcleos de base em forma cursinhos dirigidos à vestibulares públicos, concursos, enem, artes, cultura e esportes, além da defesa tática das ações afirmativas para negras/os e trabalhadoras/es.
A força necessária para a derrota ao sistema hegemônico será alcançada na medida em que as diferentes frentes de mobilização social estiverem unidas. Daí a importância em valorizar as bandeiras específicas de luta. Caio Prado Jr., em sua obra “A revolução brasileira” traça uma análise dessa necessidade: “[…] a diversidade da realidade brasileira, assim como os aspectos culturais, de modo geral, não são considerados pela esquerda brasileira. Esse desconhecimento cria obstáculos para a unificação das forças, na medida em que o discurso da vanguarda revolucionária não sensibiliza outros grupos subalternos, e que, com isso, não criam uma base social hegemônica[…]” (PRADO, 1972, p. 20).
Quanto a luta do povo negro, A UNEafro recupera alguns lutadores e teóricos entre eles Clóvis Moura, na afirmação de que a revolução virá a partir do comando da classe majoritária, pobre e duplamente oprimida, social e racialmente. E quando por fim, os setores mais explorados, encabeçados pelas/os negras/os levantarem a bandeira do socialismo, o triunfo estará próximo.
Essa é a esperança: ao reviver na prática cotidiana o exemplo revolucionário da República Comunista de Palmares, construir um país independente, justo e humanizado, onde não mais haja espaço para o racismo.
Douglas Belchior é professor de história e integrante do conselho geral da União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora (Uneafro)