A medicina dos brancos

Por mais que escarafunchem seus neurônios para condenar programa governamental, representantes da classe médica e seus apoiadores na imprensa não conseguem dissimular que falam em nome de uma elite preconceituosa

Por Luciano Martins Costa

A Justiça Federal negou liminar ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, que pretendia conceder registros provisórios somente aos médicos estrangeiros ou formados no exterior que tenham seus diplomas validados no Brasil. Segundo a 5a. Vara Federal de Belo Horizonte, a anunciada intenção da entidade, de negar o registro aos profissionais recrutados pelo programa Mais Médicos, representaria uma prática de reserva de mercado e causaria prejuízos aos doentes e usuários do Sistema Único de Saúde. A decisão vale para todo o país e estabelece um paradigma de realidade numa discussão que já havia resvalado para o terreno das pantomimas.

Profissionais estrangeiros do Mais Médicos iniciam curso de preparação, com aulas sobre saúde pública brasileira e língua portuguesa (Elza Fiúza/ABr)

O presidente do CRM de Minas Gerais é o mesmo que havia declarado que seus afiliados deveriam se negar a atender pacientes cuja saúde sofresse qualquer problema após o trabalho dos médicos estrangeiros. Essa e outras atitudes, como as vaias e declarações preconceituosas contra os cubanos que fazem treinamento em Fortaleza, provocaram repercussão negativa na opinião pública, segundo análises publicadas pelos jornais nas edições de quinta-feira (29/8).

A notícia da decisão judicial foi destacada pelo jornal O Estado de S. Paulo, que publica também uma declaração da presidente da República condenando as manifestações de preconceito contra os profissionais trazidos ao Brasil pelo programa Mais Médicos.

Aos poucos, a imprensa vai municiando seus leitores com mais informações e menos declarações, embora ainda predominem nas páginas dos diários as frases deste ou daquele personagem. Ainda no Estado e também na Folha de S. Paulo podem-se ler textos sobre o teor do contrato firmado entre o governo brasileiro e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para o recrutamento de médicos cubanos.

Folha de S. Paulo destaca em seu noticiário o fato de o convênio com a OPAS para importar profissionais de Cuba ter sido assinado antes do lançamento oficial do programa Mais Médicos. Mas essa diferença no calendário não tem a menor relevância, uma vez que o programa vinha sendo preparado desde 2011. Trata-se, claramente, de uma picuinha a mais no extenso rol das traquinagens jornalísticas que fazem o estilo do jornal paulista.

As raízes do preconceito

Os textos sobre o acordo com a OPAS são esclarecedores e desautorizam as manifestações que se referem a “trabalho escravo”, financiamento de ditaduras e outras bobagens abrigadas pela imprensa. Mesmo assim, alguns articulistas ainda gastam papel para demonstrar sua pouca afinidade com expressões como “solidariedade” e “interesse público”.

Um conhecido tributarista, que costuma ser convocado pela imprensa para falar de qualquer coisa, chama os profissionais arregimentados pela OPAS de “agentes públicos de Cuba que se intitulam médicos”. Na sua opinião, a Venezuela se tornou uma “semiditadura” depois que aquele país passou a importar médicos cubanos.

Por trás dessa e outras expressões de insensibilidade com relação às carências da saúde pública, pode-se encontrar informações interessantes para compreender a furiosa reação das entidades médicas brasileiras contra a importação de profissionais formados em outros países. O Globo, por exemplo, foi buscar nos dados estatísticos do IBGE os fundamentos para uma constatação preocupante: “Medicina ainda é curso de perfil elitista no Brasil”, diz o título da reportagem.

Trata-se de uma análise que mostra como, embora a população brasileira seja formada por 50,7% de cidadãos que se declaram pretos ou pardos, somente 1,5% dos médicos se consideram pretos e 13,4% se classificam como pardos.

Pesquisadores citados pelo jornal carioca ponderam que a vaia com que um grupo de médicos brasileiros recebeu os profissionais cubanos em Fortaleza, e a manifestação de uma jornalista do Rio Grande do Norte, que comparou as médicas daquele país a empregadas domésticas, resultam desse distanciamento elitista.

Embora programas sociais como o sistema de cotas para vagas nas universidades tenham amenizado essa diferença étnica nas escolas de medicina, esse é um setor do campo acadêmico que continua sendo reserva de jovens das classes mais abastadas, portanto, predominantemente brancos.

Por mais que rebusquem o dicionário e escarafunchem seus neurônios em busca de razões aceitáveis para condenar o programa, os representantes da classe médica do Brasil e seus apoiadores na imprensa não conseguem dissimular que, na verdade, falam em nome dessa elite preconceituosa.

 

 

 

Fonte: Observatório da Imprensa

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