A memória africana bebe Cuba Libre

O incrível regresso de cubanos à África

Quem não se emocionaria? De algum modo eu mesmo vivo tendo experiências parecidas, mas nunca a ponto de realizá-las assim, tão cabalmente, assim de poder pegar com as mãos.

Afinal, morando no Brasil estes encontros transatlânticos com a África deviam ser até bem mais comuns.

É como virar uma curva da selva úmida e escura de um passado cheio de hiatos, sem referencias sobre nós mesmos e, de repente vislumbrar o Shangrilá ensolarado das memórias de nossos parentes, do nada se acendendo. É como ultrapassar um umbral de uma porta com o vão aceso, a frente de nós, brilhante, deixando para trás o sórdido apagão da memória, antes dissolvida no mar que nos trouxe os parentes.

Também de se lamentar termos estes vínculos com nosso passado africano assim tão vivos, mas vivermos aferrados a esta vergonha estranha, este recalque cultural inexplicável que nos faz antes de iluminar, apagar a África linda que habita em nós.

É fraca a nossa etnologia, a nossa antropologia sobre África. Elas são realizadas ainda por uma maioria de doutores brancos de alma – não por serem brancos de pele, mas por serem ignorantes de si mesmos, já que somos todos seres iguais – É que mal se entende a esquizofrenia deles, cultores e autores que são deste nosso apagão cultural que, mais do que nunca, doutores que são, deviam acender.

Até se imaginam, institucionalmente beneméritos da preservação de nossa memória, mas o fazem usando métodos equivocados, invasivos e deletérios, “distanciados e objetivos”, como dizem. Mas já vai ficando claro que falam do que mal conhecem – posto que abominam – a força estranha da memória cultural, da oralidade e da tradição africanas sendo exercidas, a força humanizante inquebrantável daqueles que, lhes são estranhos apenas porque ainda são tratados como se fossem os “outros”.

Vã antropologia.

Então eis aqui, diante de vocês uma história exemplar do quanto de mal nos tem feito esta cultura do desconhecimento e da ignorância, talvez deliberada e ainda recorrente de nossos doutos.

Para vocês – os mais dispostos a refletir – uma aula de como se pode estimular a cultura de nós todos, rumo ao shangrilá de nossa identidade nacional íntegra, sem invadi-la com regras estatizantes, simplesmente promovendo encontros entre os que detêm o saber.

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“Há muito poucas histórias felizes baseadas no tráfico transatlântico de escravos, mas há uma bem recente em Serra Leoa.

Cerca de 180 anos depois de seus antepassados desembarcarem de um navio negreiro, quatro cubanos, Humberto Casanova, Alfredo Duquesne, Elvira Fumero Ani e Yandrys Izquierdo visitaram um lugar que eles chamaram de “lar”.

Suas raízes ancestrais foram rastreadas pela Dr. Emma Christopher, da Universidade de Sydney, na Austrália, usando uma coleção de canções e danças que este pequeno grupo de cubanos manteve vivas, passadas de geração à geração.

Após vários anos de investigação em toda a Libéria e em Serra Leoa, a origem das canções foi atribuída a uma comunidade bantu de Serra Leoa, onde várias canções dos cubanos e uma das suas danças foram identificados como parte do ritual de iniciação da extinta sociedade secreta “Menda”.

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Ninguém em Serra Leoa ou Cuba fala fluentemente esta língua bantu, pois a linguagem original se perdeu, mas incrivelmente as pessoas de ambos os lados do Oceano Atlântico ainda cantavam as músicas na velha língua.

Foi o suficiente para as pessoas dali reconhecessem as músicas dos cubanos e passassem a reconhecê-los como gente da família. “_Eles são nossos!”_ disse um homem chamado Salomão Musa, enquanto observava imagens da cultura dos cubanos que a Dra. Christopher havia levado numa visita anterior a aldeia.

Outras pessoas da localidade contaram antigas histórias de seus antepassados ​​e de pessoas capturadas como escravas, inclusive a história de um grupo de iniciação inteiro da sociedade Menda que foi levado pelos escravagistas logo depois que seus ritos de iniciação se encerraram.

Se os antepassados dos cubanos foram deste grupo escravizado é impossível provar, mas para algumas pessoas mais velhas do lugar os visitantes são sim descendentes de seus antepassados, de gente daquelas histórias de sequestrados para a escravidão.

Desde a primeira vez que eles viram as imagens das práticas culturais do grupo de cubanos, não pararam de perguntar se eles poderiam visitá-los um dia, para que todos pudessem estar “juntos como irmãos e irmãs”.

Demorou alguns anos para que isso acontecesse, porque era difícil para os cubanos obter permissão do governo para viajar. Com as recentes mudanças na lei, no entanto, quatro de seus membros puderam, finalmente retornar à sua pátria ancestral junto com Dra.Christopher numa emocionante visita á aldeia.

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O calor das boas-vindas fez, certamente valer a pena esperar. O primeiro a se apresentar foi o chefe principal da aldeia, Tommy Jombla, cantando na língua local, junto com um coro puxado pela bela voz de Christianne Jombla, sua neta. Em seguida, os cubanos, batucaram, cantaram e dançaram num dia de pura alegria para a comunidade.

A chefe dos cantores cubanos, Elvira Fumero Ani, foi dominada pela emoção e deixou as lágrimas escorrerem no rosto. “Eu nunca me senti tão aceita”, disse ela, falando da importância de conhecer as suas origens. Até mesmo o chefe Jombla entrou na dança.

Depois de visitar a sede da aldeia o grupo foi para a aldeia de Mokepie, onde Mama Lucy Amara, a última chefe da Sociedade Menda, os cumprimentou. Ela lhes mostrou o templo-sede que pertencia à sociedade, e que foi parcialmente destruído na guerra civil na década de 1990. Expressando o seu desejo de ver sociedade refundada. Mama Lucy ficou encantada em saber que algumas tradições Menda ainda são realizados em Cuba. Ela e Elvira cozinharam juntas, construindo uma afeição genuína, independentemente da diferença de idioma.

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O ponto culminante da viagem foi uma semana de estada na antiga vila de Mokpangumba. Acompanhados de Mama Lucy os cubanos caminharam em direção à vila (que não tem acesso rodoviário) ao som de tambores e cantando. Nada menos que quatro “demônios” mascarados da sociedade secreta e praticamente toda a aldeia celebraram sua chegada.

Houve gritos de prazer de cubanos e serra-leonenses, que se viam num filme reconhecendo-se uns aos outros, abraçando-se e cumprimentando-se com abraços calorosos e gargalhadas. Foi o início de um encontro que seria para muitos dos envolvidos uma verdadeira mudança de vida.

Os visitantes estavam determinados a não ser apenas turistas. Eles foram claros sobre o desejo de experimentar a vida na aldeia como ela é agora. Um dos visitantes, entalhador e artista Alfredo Duquesne, visitou a fazenda de Baggie Kpanabum e aprendeu a subir palmeiras, recolher frutos em seguida, processá-lo em óleo de palma.

A sra. Kpanabum ficou muito surpresa, dizendo que até mesmo algumas pessoas da aldeia não sabem fazer este trabalho e que não tinha idéia que um dia alguém viria do exterior para aprender.

Os cubanos também ensinaram a juventude local a desempenhar o seu esporte nacional: baseball. Mas a derrota do time local no campo de beisebol logo foi vingado quando os serraleonenses puderam mostrar o seu próprio esporte nacional.

Uma equipe formada por visitantes cubanos e gente de Serra Leoa, além de membros da tripulação, fez um documentário sobre a visita (o fotógrafo e produtor de campo cubano Sergio LeyvaSeiglie, cineasta cubano Javier Labrador Deulofeu e Barmmy Boy Mansaray de Serra Leoa), bem como alguns moradores recrutados para auxiliar. Na disputa no jogo de Serra Leoa, o lado ‘visitantes” foi derrotado por 1-0 pelos moradores experientes, apesar de seus anfitriões generosos terem jogado suavemente.

Todo o tempo da estadia foi de muito canto, dança e percussão. As poucas músicas ainda conhecidos por ambos os grupos foram as mais apreciadas, muitas vezes, com discussões detalhadas sobre as diferentes formas com que as palavras agora são pronunciadas.

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Houve também o intercâmbio de músicas que não sobreviveram em Cuba e o ensino de novas canções que o grupo cubano tinha composto mais recentemente.

Joe Allie, um homem idoso em Mokpangumba que olhava maravilhado quando ouviu pela primeira vez a gravação dos cubanos cantando uma música que já tinha sido a favorita de seu avô, dançou pela primeira vez em vinte anos. Ele até tentou prontamente dançar algumas danças cubanas mais recentes, incluindo o cha-cha-cha e rumba.

O carinho da aldeia para com os visitantes foi surpreendente. Todos os dias as pessoas apareciam com presentes, e sua tolerância para com aqueles com os quais já não compartilham mais a língua e a cultura – além das poucas e velhas canções e danças lembradas- fez daquela viagem uma experiência inesquecível.

A despedida da vila foi animada, com “irmãos”, como Alfredo Duquesne e Baggie Kpanabum trocando roupas e fotografias, determinados a manter contato.

O desafio agora para todos os envolvidos será construir pontes a partir deste começo. Reconstruir os laços de uma comunidade há muito tempo quebrados pela escravatura transatlântica é um projeto inédito, mas muito digno.

Talvez, apenas talvez, através da formação destes novos laços, melhores dias podem amanhecer tanto para Mokpangumba, que precisa de algumas melhorias em sua vida, e para os cubanos, que há muito se sentiam desenraizados e isolados.

É uma grande empreitada. A melhor forma de fazer isso é algo que só se descobrirá pela discussão e pensando em ambos os lados. Mas, certamente, juntos é melhor do que separados, depois de quase dois séculos de separação.

“_Precisamos ajudar uns aos outros”_ disse Duquesne, “isso é o que as famílias fazem.”

Veja facebook.com / theyarewethemovie para mais informações e fotografias. Um documentário sobre todo o projeto, chamado de “Eles são nós ‘será lançado ainda em 2013.”

(Tradução by Titio)

 

 

Fonte: Blog SPIRITO SANTO

 

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