“A mídia está cheia de estereótipos da mulher negra”

Por: Ana Paula Maravalho

 

 

A formação de uma Rede de Mulheres Negras Nordestinas para monitorar a mídia é um dos objetivos do Seminário Mulheres Negras Nordestinas contra a discriminação na mídia, que começa hoje (19) no Recife.

 

O seminário, organizado pelo Observatório Negro, discute durante quatro dias a relação da mídia com esta parcela da população. As mulheres que se reúnem no evento partem da constatação que sofrem cotidianamente com a estereotipização e a violação dos seus direitos. O encontro, além de criar a rede de monitoramento de mídia, pretende fortalecer ações conjuntas na justiça de grupos de mulheres contra a discriminação racial e de gênero de todo o país.

 

O Observatório do Direito à Comunicação conversou com Ana Paula Maravalho, uma das organizadoras do evento e Conselheira Gestora do Observatório Negro, sobre o seminário, a ação do Estado na proteção dos direitos das mulheres negras na mídia e também a legislação brasileira de combate ao racismo.

 

Como surgiu a ideia de fazer um seminário para discutir a abordagem que a mídia dá ao recorte de gênero e raça, mais especificamente a representação da mulher negra da mídia?
Na verdade, o Observatório Negro desde o seu surgimento, em 2005, já tem dentre os seus objetivos – a defesa dos direitos humanos da população negra – uma a ação voltada para o monitoramento da mídia. O Observatório Negro é um grupo formado por advogadas e até mesmo por esse motivo tem ações voltadas para o campo do judiciário, para a efetivação do crime de racismo, e isso inclui acompanhamento das vítimas de racismo, que também é muito praticado pela mídia. O seminário veio como uma necessidade de expandir para outras organizações de mulheres negras várias ações que foram levadas adiante pelo Observatório nesses cinco anos de existência. A gente, ao longo dos anos, percebeu que muitas das ações que promovíamos eram de âmbito nacional e isso precisava ser articulado. Se a gente começar a fazer ações nacionais contra a estereotipização dos negros/as e contra o racismo na mídia, fica mais difícil de o Ministério Público dizer que não tem nada demais os programas que violam os direitos humanos dos negros e das negras, como vem acontecendo.

 

Como que vem se dando a atuação do Estado nesses casos?
O Ministério Público, que é o órgão que deve ser provocado pela sociedade para tomar atitudes contra práticas racistas, não está sabendo lidar com essa questão. Os promotores desconhecem a legislação brasileira. Será que eles estão realmente preparados para ocupar o lugar de representantes do Estado? O Estado Brasileiro assinou, em 1968, uma convenção contra todas as formas de discriminação. A Constituição de 1988 já traz uma série de positivações também sobre o tema e, em 1995, o movimento negro fez uma grande mobilização para regulamentação da Constituição Federal e para que o Estado começasse a fazer uma ofensiva contra o racismo e assim foi feito. Depois da Marcha Zumbi dos Palmares contra a Discriminação Racial e pela Vida, que foi o nome dado às mobilizações de 1995, o Estado brasileiro reconheceu que existe racismo no Brasil e que a partir de então o governo tomaria as providências cabíveis para combater o racismo. Várias ações interligando vários setores do Estado foram feitas, e atualmente nós temos uma legislação que pode ser considerada avançada, contudo ainda não da melhor forma praticada. Infelizmente, o Ministério Público ainda não se encontra preparado para cumprir seu papel de fiscal da lei e defensor da sociedade.

 

Já existem algumas experiências de combate à discriminação racial na mídia. Em que pé estão estas ações?
Nós, do Observatório Negro, já entramos com uma ação local contra as cervejarias que faziam propaganda de cerveja usando o corpo da mulher como objeto de consumo. Esta ação foi feita em conjunto com outras duas organizações daqui, o SOS Corpo e Fórum de Mulheres de Pernambuco. Outra ação é a da organização Uiala Mukaji, que move uma ação contra um site que ridicularizou um adereço usado pelas mulheres de uma religião de matriz africana. Tem também uma propaganda de uma água sanitária aqui de Pernambuco que tinha várias violações de direitos humanos, dentre elas a mercantilização do corpo da mulher e a estereotipização da mulher negra. Entramos no Ministério Público estadual contra a propaganda e rendeu um termo de ajuste de conduta.

Nacionalmente, podemos citar o caso de uma programa da Xuxa que foi veiculado na televisão e que já tinha, inclusive, sido lançado em DVD. O programa fazia uma comparação de mau gosto entre mulheres e animais e este programa saiu do ar. Ele não existe mais na internet e nem em DVD para comprar. O Estado ainda não respondeu a ação, mas os produtores já tiraram de circulação. Nós entendemos isso já como uma vitória. Tem também a ação contra a novela “A lua me disse”, também da Rede Globo. Nessa novela, uma índia era constantemente ridicularizada e, no capítulo final, uma negra virou macaco. Infelizmente, nesse caso, o Ministério Público Federal achou que não houve problema. Mas até nesse caso, acreditamos que a ação foi positiva porque trouxe o debate para a sociedade.

 

Vocês têm dados sobre a participação das mulheres negras na mídia?
Dados ainda não temos e este é um dos objetivos do seminário. Há estudos de militantes negros sobre o caso. Por exemplo, o livro de Joelzito Araújo – “A negação do Brasil” – analisou, em 98 novelas da Rede Globo, como é a representação do negro e da negra. Ficou um trabalho muito interessante. São coisas como essas que a gente tem que expor, dar visibilidade e também estimular novas pesquisas. Quando a gente defende as cotas para negros e negras nas Universidades Públicas a gente não quer só que este grupo tenha o acesso, mas que também possa se criar como referência um pensamento negro das Universidades.

 

O que significa promover a democratização racial da comunicação? Quais as exigências para que isso aconteça?
É justamente a gente ter a presença da população negra na mídia sob um perspectiva diferenciada, porque atualmente, com os exemplos que a gente vem levantando, a televisão não representa a população negra com igualdade. A mídia ainda está cheia de estereótipo. Nem na Suécia a gente vê tão pouco negro na televisão. Eu já tive a oportunidade de morar na França e pude ver que, lá, apesar de toda perseguição atual do governo, você encontra repórter negro, árabe na TV. Eu posso dizer até que vi mais Miss França negra do que no Brasil, que até hoje eu só vi a Deise Nunes de Souza.

O que a televisão passa como ficção não pode ser encarada como coisas fora da realidade, porque esta ficção influencia a vida das pessoas. Nada contra as mulheres loiras, mas a ideia que se passa é que esse é o padrão. Os cabelos lisos também. Há pouco tempo, aqui no Recife, uma menina de 10 anos morreu porque tomou um choque fazendo chapinha no cabelo. A criança fazia diariamente chapinha no cabelo para sair de casa para seguir esses padrões determinados e morreu. Isso é muito cruel.

 

Além dos casos que você citou acima, existem outros casos em que o Observatório Negro já promoveu ações contra práticas de racismo?
Temos um caso muito emblemático aqui que foi a publicação de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, em quadrinhos. A publicação, que é uma releitura da obra que consideramos ser a bíblia do racismo, foi relançada em formato mais fácil para as crianças e adotado por escolas da rede municipal do Recife. O governo do Estado também iniciou as negociações para adotar o livro, mas nós entramos com uma ação no Ministério Público Estadual para denunciar a quantidade de preconceitos que iriam junto com esse livro. À nós, a denúncia das visões preconceituosas foram trazidas pelo livro por uma professora. O livro nos pareceu completamente inadequado para crianças. A toda hora eles mostram as negras e índias nuas perto dos europeus vestidos. Sem falar que tem um quadrinho especificamente que mostra uma negra nua e um senhor branco por cima dela. Será que isso é adequado para uma criança? Que tipo de imagem é essa? Não está sendo proposta nenhuma leitura crítica da obra. Neste caso, entramos com uma ação no Ministério Público Federal e com uma ação no Ministério Público Estadual. O MPF respondeu que não via nada de mais, que não ia discutir com a obra de Gilberto Freyre. Já o Ministério Público Estadual iniciou um inquérito civil e começou a ouvir as secretarias estaduais e municipais e até mesmo a Secretaria Regional do Ministério da Cultura, que investiu R$ 300 mil para publicação do livro. Por que o Ministério Público Estadual está fazendo isso e o Federal não pode fazer? Uma questão importante para se pensar é que o MPE tem instituído um GT de Racismo, que discute a temática e o papel do Estado. Uma coisa que é importante também ser ressaltada sobre essas ações é que a grande maioria é movida por mulheres.

 

Com que tipo de resultado vocês pretendem sair do Seminário? Por exemplo, uma ação de monitoramento específico das mulheres negras na mídia seria uma opção para que o debate tenha uma duração para além do evento?
O primeiro objetivo do evento é que essas organizações se sintam municiadas para atuar em ações nacionais. Por exemplo, várias entidades entrarem na Justiça contra determinada violação ao mesmo tempo, em vários lugares do país. Ainda falta muita informação. As organizações ainda não se sentem preparadas para cobrar da Justiça. Acham que precisam de advogado, ficam com medo. Então, nossa ideia é que a gente consiga dar elementos para esse tipo de ação e que os movimentos utilizem o Judiciário para a defesa dos nossos direitos. O segundo objetivo é a formação da Rede de Mulheres Negras Nordestinas. Essa rede vai ter a tarefa de monitorar a mídia e dessa forma levantar informações para ações em conjunto. Vai atuar como uma rede de defesa da imagem da mulher negra na mídia.


Vocês têm alguma proposta de ação de Estado para combater esse diagnóstico que vocês fazem de racismo na mídia?
O que a gente quer é que o Estado, quando acionado, responda em conformidade com os acordos dos quais ele é signatário e com as suas leis. No caso de “Casa Grande e Senzala” em quadrinhos, por exemplo, antes de acionarmos a Justiça, mandamos ofícios para as secretarias estaduais e municipais e também para o Ministério da Cultura, que também foi responsável pela publicação, mas não obtivemos nenhuma resposta dos governos, ninguém se posicionou. Isso é muito ruim. É importante que o Estado ouça a população e cumpra o seu dever, que é o de promover a igualdade racial e não o racismo.

 

 

 

Fonte: Observatório do Direito à Comunicação

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