A mulher que conseguiu colocar o famoso mafioso Lucky Luciano atrás das grades

Enviado por / FonteDa BBC

Estamos em uma noite gelada de fevereiro de 1936 em Nova York, nos Estados Unidos. Há uma espessa camada de neve. Grande parte da cidade está vazia, mas um lugar no centro de Manhattan, estranhamente, está cheio de pessoas.

Em um dos arranha-céus mais altos da cidade, o elevador sobe e desce do térreo até o 13º andar, que está desocupado. Quando as portas se abrem, saem mulheres em vestidos de noite.

O elevador segue subindo e descendo até que, à meia noite, não há mais espaço no 13º andar. Mas as mulheres seguem chegando, até que outro andar fica repleto delas.

Elas são trabalhadoras sexuais. Nesse 14° andar, uma equipe de investigação, composta por 20 advogados que passaram mais de seis meses tentando preparar um processo contra o crime organizado da cidade, está à sua espera.

No centro desse movimentado escritório, encontra-se uma advogada há dois dias sem dormir. Seu nome é Eunice Carter.

Ela é a única mulher da equipe, a única participante negra e a arma secreta na luta contra a máfia.

‘Lucky’

Em 1935, a máfia controlava quase todas as atividades ilícitas nos Estados Unidos. Um dos seus chefes era o ítalo-americano Charles “Lucky” Luciano.

“Luciano havia constatado que existiam muitas guerras territoriais entre os gângsteres”, segundo contou à BBC a jornalista da CNBC Marilyn Greenwald, coautora da biografia Eunice Hunton Carter: A Lifelong Fight for Social Justice (“Eunice Hunton Carter: a luta de toda uma vida pela justiça social”, em tradução livre).

Charles Lucky Luciano nasceu em 1897 na Sicília (Itália), onde recebeu o nome de Salvatore Lucania. Ele morreu em Nápoles, também na Itália, em 1962 (Foto: GETTY IMAGES)

“Ele acreditava que, para realmente pensar grande e ganhar ainda mais dinheiro, era preciso trabalhar em conjunto e não um contra o outro”, explica ela. “Ele propôs uma estrutura, na qual diversos grupos de gângsteres trabalhariam sob um mesmo guarda-chuva” e criou o conselho de administração da máfia, ao qual deu o nome de “Comissão”.

Sendo parte da cúpula, Lucky desfrutava de um estilo de vida extravagante e parecia não ter o menor temor à lei. Mas o governador de Nova York decidiu tomar medidas contra o crime organizado e nomeou um procurador especial para dirigir a investigação: o advogado Thomas Dewey, com 30 anos de idade.

Sucessos incríveis

Como não podia correr o risco de que algum espião se infiltrasse na investigação, Dewey conquistou o direito de ser independente do governador e contratar sua própria equipe.

No lado externo do seu escritório, formou-se uma fila enorme de candidatos que se estendia ao longo da calçada. Há relatos de que mais de 2 mil advogados se candidataram – e, entre eles, alguém que mudaria o rumo da investigação: Eunice Carter.

Naquela noite de fevereiro de 1936, havia muita atividade em dois andares do Edifício Woolworth, em Nova York. Obra da artista Rachael Robinson Elmer (Foto: GETTY IMAGES)

“Ela não só se graduou e chegou ao mestrado no Smith College, em Massachusetts (Estados Unidos), em 1921 e foi trabalhadora social por um curto período, mas também se tornou, em 1932, a primeira mulher negra a receber um diploma de direito na Universidade Fordham, em Nova York.

Posteriormente, Carter foi a primeira mulher afro-americana a ser aprovada pela Ordem dos Advogados do Estado de Nova York. É um feito incrível”, destaca a socióloga Tsedale M. Melaku, autora do livro You don’t Look Like a Lawyer: Black Women and Systemic Gendered Racism (“Você não parece uma advogada: as mulheres negras e o racismo de gênero sistêmico”, em tradução livre).

Eunice Carter chegou ao escritório de Dewey como uma mulher de 36 anos que havia construído seu nome com um trabalho excepcional para a Comissão Antidistúrbios do Harlem – um painel birracial nomeado pelo prefeito para investigar as causas dos distúrbios raciais naquele bairro de Nova York em 1935. Ela foi nomeada secretária do grupo e reuniu grande quantidade de evidências que levaram à conclusão de que a situação no Harlem estava relacionada com o racismo sistêmico.

Seu trabalho mereceu ampla admiração e Carter foi elogiada pelo então prefeito Fiorello La Guardia. Dewey também ficou impressionado e a contratou, além de outros 19 advogados – todos homens, brancos.

Thomas Dewey tornou-se um herói popular (Foto: GETTY IMAGES)

“Isso demonstra que Carter tinha um talento excepcional”, destaca Yun Li, coautora do livro sobre Carter, em conjunto com Marilyn Greenwald. “Ela foi a primeira afro-americana a trabalhar no escritório do procurador distrital do condado de Nova York. Isso significa que ela rompeu muitas barreiras!”

O início das investigações

Dewey instalou sua equipe de advogados no 14° andar do edifício Woolworth, em Manhattan (Nova York), e transmitiu um pronunciamento para o público e a imprensa.

“Ele falou como o crime organizado na cidade de Nova York havia prejudicado a segurança e a vida cotidiana de todos”, destaca Yun Li.

Ao final do seu discurso, ele pediu à imprensa que desse privacidade à sua investigação e insistiu ao público que cooperasse. Sua equipe estava pronta para receber pistas e garantia a confidencialidade dos informantes.

Um dilúvio de informações marcou a investigação (Foto: GETTY IMAGES)

“Depois do discurso pelo rádio, o escritório recebeu centenas de informações do público sobre atividades suspeitas”, segundo Li. E Carter recebeu a tarefa de cuidar das denúncias relativas à prostituição – embora, naquele momento, esses casos não fossem considerados relacionados ao crime organizado.

Por quê?

Existem relatos históricos divergentes sobre o motivo por que essa tarefa foi delegada a Eunice Carter.

Há quem afirme que seu trabalho na Comissão Antidistúrbios demonstrou que ela era boa nessa tarefa. Já outros acreditam que isso refletia seu lugar na parte inferior da hierarquia da equipe, por ser mulher e negra.

Mas Carter era claramente uma pessoa difícil de se menosprezar, como demonstravam seus sucessos acadêmicos.

Eunice Carter foi a primeira mulher negra a formar-se em direito na Universidade Fordham, uma instituição católica privada de Nova York, nos Estados Unidos (Foto: GETTY IMAGES)

Carter vinha de uma família notável. Seu avô havia escapado da escravidão três vezes e comprou sua liberdade posteriormente. Seu pai fundou a Divisão Negra da Associação de Jovens Cristãos (YMCA, na sigla em inglês) e sua mãe era trabalhadora social, ativista, escritora, organizadora política e educadora.

“Eunice escreveu com frequência sobre o valor dos modelos a serem seguidos ao longo da vida”, segundo Marilyn Greenwald, que escreveu a biografia de Carter com Yun Li e é professora emérita de jornalismo da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. “Ela disse que cada pioneiro é ‘um marco no caminho do progresso, que conduz ao objetivo da oportunidade irrestrita'”.

Sem baixar a cabeça

Metódica e meticulosa, Eunice Carter valeu-se de seu treinamento e experiência para encontrar conexões onde outras pessoas só viam montes de papel.

Ela respondeu a todas as cartas e chamadas telefônicas, convidou membros do público a irem até o escritório e os entrevistou para obter a maior quantidade de evidências possível.

“Enquanto trabalhava dia e noite, revisando toneladas de casos, ela observou uma conexão vital – um padrão nos diferentes casos de prostituição em Nova York”, afirma Tsedale Melaku.

“As mulheres detidas eram representadas pelos mesmos advogados e as fianças eram pagas pelas mesmas pessoas.”

Carter comprovou que as histórias se repetiam. As acusações contra prostitutas nunca seguiam adiante e os bordéis pareciam intocáveis. As pessoas que pagavam as fianças eram sempre as mesmas, assim como os advogados que as representavam – que eram também de alto perfil e cobravam honorários igualmente altos. Tudo parecia indicar que uma poderosa entidade estava por trás daqueles casos.

A maioria dos seus colegas acreditava que a “profissão mais antiga do mundo” era muito dispersa para ser controlada dessa forma, mas Carter convenceu o procurador Murray Gurfein de que as evidências indicavam uma possível supervisão da máfia. E todos os caminhos conduziam a uma só pessoa.

A operação

A brilhante teoria de Carter, vinculando a máfia à prostituição, não convenceu imediatamente o procurador Dewey. Ele relutou em seguir essa linha de investigação, por temer que ela seria considerada uma “cruzada moral”, com consequências negativas para seus sonhos políticos.

Mas Eunice Carter “continuou apresentando evidências cada vez mais detalhadas, até que Dewey ordenou escutas telefônicas de alguns dos maiores agentes da rede de prostituição”, relata Yun Li. “E também contratou detetives para seguir os advogados da máfia e exploradores de prostitutas, para conseguir mais informações.”

Quando as evidências tornaram-se suficientes, Carter e Gurfein decidiram invadir todos os bordéis que eles haviam identificado. E, como sabiam que os mafiosos contavam com policiais subornados para avisá-los sempre que uma batida era planejada, eles mudaram de estratégia.

Nessa noite gelada de fevereiro de 1936, policiais de Nova York foram espalhados às centenas por toda a cidade, em grupos de dois ou três. Eles esperaram em diferentes esquinas, sem saber o motivo por que estavam ali.

“A cada pequeno esquadrão, foi entregue um envelope lacrado com a instrução de somente abrir o envelope ao chegar ao local. Foi assim que os policiais ficaram sabendo que estavam em uma casa de prostituição. Eles prenderam mais de 100 trabalhadoras sexuais e cerca de 10 homens”, segundo Li.

Pagamento por proteção

Muitas das mulheres e homens presentes nessa noite tornaram-se testemunhas chave contra Lucky Luciano. Isso só foi conseguido graças à intervenção de Carter, que falou com as mulheres com respeito e cordialidade – ao contrário da postura dura e ameaçadora dos outros investigadores da equipe de Dewey.

Agindo dessa forma, Carter conseguiu provas de que elas eram controladas por algo chamado de “combinação”. A combinação era uma espécie de sindicato que garantia a elas que não iriam para a cadeia se fossem presas e, em troca, elas deveriam pagar um alto percentual do que recebiam.

Tudo isso era controlado por Lucky Luciano, que estava de fato beneficiando-se da prostituição.

Na primavera do hemisfério norte de 1936, Lucky Luciano e outros nove acusados foram declarados culpados de exploração forçada das trabalhadoras sexuais e de dirigir uma rede de prostituição. Ele foi sentenciado a 30 até 50 anos de prisão, mais foi libertado 11 anos depois, em troca de ajudar o exército a proteger os portos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

Lucky Luciano na sala do tribunal, entre dois guardas, durante seu julgamento em Nova York (Foto: GETTY IMAGES)

O esquecimento

Eunice Carter voltou a trabalhar na Comissão de Distúrbios Raciais do Harlem. Ela também continuou trabalhando com Dewey e o Escritório do Procurador Distrital até 1945, quando iniciou sua carreira privada como advogada.

Carter trabalhou com as Nações Unidas, o Conselho Nacional de Mulheres Negras, o Conselho Internacional de Mulheres e a YWCA. Ela morreu em 1970.

E, apesar de todo esse trabalho, é difícil encontrar relatos da sua história. Embora sua raça e seu gênero tenham chamado a atenção quando ela fez parte do grupo conhecido como “Os vinte contra o submundo”, o mafioso Lucky Luciano e o procurador e depois político Thomas Dewey estão muito mais presentes, até mesmo na cultura popular.

Mas foi ela quem encontrou a forma de derrubar um gângster que estava aterrorizando pessoas de todas as etnias e gêneros.

“Talvez a lição seja de que, quando aproveitamos as ideias de todos os membros da sociedade, sem obstáculos criados por barreiras arbitrárias e preconceitos, quem ganha é a sociedade como um todo”, como conclui o apresentador da série radiofônica Sideways da BBC, no episódio The Woman Who Brought Down the Mob (“A mulher que derrubou a máfia”, em tradução livre).

Foto em destaque: Reprodução/ BBC

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