Eram 15h de sexta-feira quando Liomezia Maria de Jesus, cabeleireira, 32 anos, moradora do Bairro das Mercês, em São Paulo, estava no trabalho e viu as ligações perdidas que sua irmã de Barra do Choça, na Bahia havia deixado no seu celular. “Era como se o chão tivesse aberto sob meus pés”, conta ela sobre como se sentiu quando finalmente conseguiu atender uma das chamadas. O motivo do susto: seu filho tinha acabado de ser preso. O jovem de 16 anos saiu de casa para comprar cortinas às 12h17, como mostram as filmagens da loja, mas não voltou para casa. No caminho foi abordado pela polícia, preso, reconhecido pelas vítimas de dois roubos registrados naquela tarde e internado em uma unidade de medida socioeducativa, acusado de dois roubos a mão armada que ocorreram às 12h30 em locais distantes. Somente após 25 dias preso, ele foi inocentado.
A história da prisão de Eduardo foi noticiada na época. Mas por trás da trajetória da sua libertação, há outra história: a de sua mãe, que precisou parar de trabalhar e se dedicou por 25 dias a fazer um trabalho de investigação que nem deveria ser necessário para provar a inocência do filho. “Inocente até que se prove o contrário”, já ouviu falar? No caso dele, foi o contrário.
Liomezia é mais uma entre as muitas mulheres no Brasil que precisaram buscar provas e a ajuda de movimentos sociais para comprovar a inocência de seus entes presos injustamente. Como costumam ser as chefes de família e também as responsáveis pelo cuidado, são elas que ficam com o papel que deveria ser do Estado: investigam as prisões arbitrárias e operam o trabalho de abastecimento das prisões com roupas, itens de higiene e alimentação.
Mulheres na linha de frente contra as prisões arbitrárias
As prisões arbitrárias provocam angústia e sofrimento em mães, avós, irmãs, filhas e companheiras, realidade que atinge principalmente mulheres negras – afinal, 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico são negros. Isso porque elas também passam a enfrentar uma criminalização que ultrapassa os corpos de seus entes. Apesar de previsto por lei que menores de idade sejam acompanhados pelos responsáveis em qualquer fase do processo, quando Liomezia chegou à delegacia precisou contratar um advogado para garantir o direito ainda no local. “Era como se um cachorro estivesse lá, fingiram que não me viram”, conta a mãe.
Segundo Natália Lago, doutora em antropologia social e pesquisadora de temas como gênero, sexualidade e prisões, é preciso pensar as prisões com perspectiva de gênero porque as mulheres acabam ficando, mais uma vez, responsáveis pelos trabalhos de cuidado. “Não só com a comida que entra e a roupa que é levada, mas com a peregrinação que elas precisam fazer entre os espaços estatais, comprovando a inocência, visitando fóruns, delegacias e procurando a defensoria pública para garantir que a pessoa que ela tem relação e está presa tenha a devida assistência” complementa.
“Lidar com a justiça é lutar contra Deus”
Durante os cinco minutos em que pôde falar com o seu filho, Liomezia o questionou sobre o percurso que ele teria percorrido até a loja de cortinas, percebendo que o local de apreensão informado por ele divergia do indicado no boletim de ocorrência. “Nesse momento eu tive a certeza que ele era inocente, e prometi que ia tirar ele de lá o mais rápido possível”, relata. O primeiro passo para cumprir a promessa foi ir atrás das câmeras de segurança, onde descobriu que, além da divergência no local de apreensão, o boletim de ocorrência também apontava que o jovem havia corrido no momento da abordagem, embora as filmagens mostrassem outra coisa: que ele rapidamente havia parado e levantado as mãos.
A mãe seguiu a busca por provas e, com o auxílio de uma nova advogada, solicitou também os áudios da viatura, digitais do assalto e as cartas de conduta que familiares, amigos e professores escreveram declarando que o jovem era uma boa pessoa, com um bom comportamento. Entretanto, para sua surpresa, no momento de apresentar as provas reunidas na audiência, a juíza responsável pelo caso decidiu apreciá-las até uma próxima data, mantendo a internação. “A gente lida todos os dias com pessoas de nariz em pé, maslidar com a justiça é lutar contra Deus”, desabafou a mãe.
A ajuda dos movimentos sociais anti-cárcere
Na maioria dos casos, as vítimas de acusações infundadas e forjamentos (criação de evidência falsa com a intenção de incriminação) não recebem assistência jurídica do Estado e acabam ficando sem o direito de defesa. “Não é dizer que a defensoria pública não faz uma boa defesa, ela faz, mas acompanha milhares de processos ao mesmo tempo com um orçamento público bem menor que outras instituições, e acaba não podendo, muitas vezes, ir atrás de todas as provas no processo”, explica a advogada e pesquisadora de temas relacionados à justiça criminal, Viviane Balbuglio. Por isso, mulheres acabam encontrando acolhimento e ajuda em associações e movimentos sociais.
Foi o que aconteceu com Liomezia, que em uma postagem que fez no Facebook viu sua esperança se reacender quando encontrou a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocído. Atuando em vários núcleos espalhados pela cidade de São Paulo, eles oferecem suporte jurídico, psicológico, além do acolhimento e apoio na busca por justiça. “A rede foi comigo até o fim, ficaram do meu lado nos 25 dias, até o dia em que Eduardo foi solto” afirma a mãe.
Ao lado deles e dos veículos de imprensa que estavam acompanhando o caso, como a mídia independente Ponte Jornalismo, ela conseguiu anexar reportagens ao processo e descobriu que uma das vítimas do assalto havia recuperado seus pertences logo após o ocorrido, afirmando ainda, não ter certeza se o filho de Liomezia, o jovem que reconheceu na delegacia, era mesmo o assaltante. Depois de muita insistência na porta de um fórum para o recebimento das evidências, e das vítimas mudarem sua versão no depoimento negando o reconhecimento do jovem, ele foi inocentado durante a segunda audiência.
Mas nem sempre é assim…
Andréia e Adriana, moradoras do bairro Jabaquara, também em São Paulo, não tiveram a mesma alegria. As duas irmãs ainda compartilham a angústia diante da prisão de seus filhos e seguem em peregrinação para conseguir comprovar a inocência. Os primos foram presos acusados de um roubo que ocorreu em um bairro vizinho e, segundo o relato das mães, os dois tinham acabado de sair de casa para encontrar uma amiga quando foram abordados pelos policiais. Eles foram reconhecidos pela cor dos olhos e do aparelho odontológico nas fotos do álbum fotográfico de suspeitos.
Adriana conta que amigos que testemunharam o momento da prisão relataram que os policiais perguntaram ao seu filho “se ele havia gostado do presente”, uma alusão ao aniversário do jovem que tinha completado 18 anos há pouco menos de um mês.
Quem são os alvos
Histórias como essas não são exceção. Levantamento feito pelo Condege em 2021, mostrou que 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros. No processo do filho de Liomezia, apenas sua cútis, negra, foi destacada. Enquanto a dos policiais, do delegado e da vítima foram ignoradas. “É pro juiz saber que ele é negro?” questiona sua mãe.
Segundo o Anuário de Segurança Pública divulgado pelo Forúm Brasileiro de Segurança Pública em 2020, 66,7% das pessoas privadas de liberdade no Brasil são negras e a proporção de negros nas prisões cresceu 14% em 15 anos, enquanto a de brancos caiu 19%. Para a advogada Viviane Balbuglio, essas são as pessoas que a sociedade brasileira mais criminaliza e seleciona para estar dentro do cárcere por consequência do histórico de escravidão do país. “A desigualdade que saiu da escravidão foi se transformando em políticas de aprisionamento. É uma forma da sociedade lidar com a população que ela mesma discrimina”, explica.
O preço para as mulheres
Liomezia, Andreia e Adriana foram mulheres que acabaram sentindo a prisão de seus filhos também no bolso. Liomezia se viu trabalhando novamente como cabeleireira, profissão que não exercia há 12 anos. Nos dias em que não pôde trabalhar porque estava reunindo provas, ficou sem receber. Andreia mudou de cidade com medo da repressão policial e, além dos custos com a mudança, gasta com o deslocamento para conseguir visitar o filho na cidade vizinha. Enquanto sua irmã Adriana gasta em média R$1.460 com advogados, deslocamento para visitas e os “jumbos”, kits de mantimentos com itens de higiene pessoal e alimentação enviados às prisões por familiares. “Quase não sobra nada pra mim, meu dinheiro vai todo pra tirar ele de lá”, desabafa.
Durante a prisão, a renda diminui e as contas aumentam e, na maioria das vezes, as familiares precisam pagar, literalmente, pelos crimes não cometidos de seus entes. “É um paradoxo, as famílias que são vitimadas por esse sistema são as mesmas que o sustentam, mas qual alternativa elas têm?” questiona a pesquisadora.
Realidade que, na maior parte, não se altera mesmo após a comprovação da inocência. Apesar da saída do filho da internação, Liomezia decidiu ficar um tempo em casa sem trabalhar com medo de que o caso se repita: “Eu prefiro arriscar o financeiro da minha família mais uma vez, do que arriscar eles forjarem ele de uma maneira muito mais grave e que a gente não consiga reverter” justifica a mãe.
E tudo piorou com a pandemia….
A pandemia de Covid-19 dificultou ainda mais as coisas. Em abril de 2021, a Pastoral Carcerária Nacional realizou um questionário após um ano do início da pandemia para obter informações sobre a situação carcerária no país, e as respostas mostraram o impacto da suspensão das visitas, a dificuldade na entrega dos alimentos e itens de higiene, e a falta de informações sobre as pessoas privadas de liberdade.
Isso porque o envio dos jumbos sofreu grandes alterações: os preços dos itens de higiene e alimentação subiram e com os envios sendo realizados pelos Correios, os custos aumentaram e a demora na entrega também.
Além disso, grande parte das audiências de custódia presenciais estão suspensas e outras estão sendo realizadas de forma virtual. “Ainda que a audiência não aconteça, a ocorrência policial será encaminhada para um juiz ou juíza que decidirá pela manutenção da prisão ou não nas próximas horas. Por isso é extremamente relevante que alguns documentos já sejam encaminhados para quem atuará na defesa inicial da pessoa que foi forjada.” explica a advogada Viviane Balbuglio.
O perigo na luta contra as prisões arbitrárias
Elas assumem o papel da investigação indo atrás de câmeras, testemunhas, reconstituindo a cena do crime, lidam com burocracias, lotam a fila das visitas e são responsáveis pelo abastecimento de itens essenciais como alimentos, roupas e produtos de higiene.Mas a luta dessas mulheres é cercada de riscos, como alerta a advogada Viviane Balbuglio. “Por assumirem o papel de investigação e serem quem, de alguma forma, monitora o sistema prisional, elas podem ser mais criminalizadas e é o tipo de coisa que temos que nos manter atentas o tempo inteiro”.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), uma das articuladoras da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, sentiu isso na pele. Em novembro de 2020, após testemunhar pela janela uma abordagem violenta e tentativa de forjamento de dois jovens negros, a militante teve sua casa invadida e revirada por policiais. “Eu chamei a atenção de propósito, porque entre ver um menino ser assassinado e ser ameaçada, julguei que era melhor sofrer ameaças.” explica. Com ajuda de advogados da organização, o jovem foi liberado depois de não encontrarem digitais na arma que supostamente seria dele.
Mulheres são maioria no apoio aos encarcerados, tanto durante a investigação quanto na militância. Dinha explica que apesar de sofrerem represália, mulheres são atingidas de forma indireta por conta do machismo presente na sociedade. “É mais fácil forjar um homem das nossas famílias, do que incriminar donas de casa, mães de família e jovens estudantes. Afinal, tem essa ideia de que as mulheres seriam mais frágeis e dóceis. Já as mulheres negras, como dizia Gilberto Freyre, são para trabalhar, logo são vistas como trabalhadoras e não como criminosas”, explica.
Crédito das artes: Nazura/AzMina