‘A periferia morena, mulata, a amarela é credora do FMI’

Por: Vivian Oswald

BRASÍLIA. Em menos de três anos, o economista Paulo Nogueira Batista Jr., que desembarcou em Washington em 2007 para ocupar a diretoria-Executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI) para Brasil e outros oito países, viu a instituição passar por uma verdadeira reviravolta. Afirma que a crise financeira global abalou o pensamento econômico tradicional e levou o fundo a rever suas doutrinas. Pela primeira vez desde que as turbulências arrefeceram, ele abriu o verbo contra o fundo.

 

Em entrevista ao GLOBO, disse que a instituição é gerida de forma obsoleta. Nogueira Batista, que esteve em Brasília semana passada identifica uma inversão total nos paradigmas da instituição e sua clientela: “Hoje são brancos de olhos azuis, europeus. A periferia morena, mulata, a amarela é credora do FMI”.


O GLOBO. O que aconteceu com o FMI após a crise?

PAULO NOGUEIRA BATISTA. A crise que teve origem nos principais países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, abalou o pensamento econômico tradicional e levou a uma revisão de doutrinas dentro do FMI, que se tornou mais flexível na abordagem dos programas econômicos. O fundo flexibilizou também seus instrumentos de empréstimo, seu modo de atuar nos países que a ele recorrem. Foi decorrência da crise, da pressão dos países em desenvolvimento e também da experiência de alguns deles durante as turbulências. China, Índia, Brasil não seguiram o receituário econômico tradicional.

 

O que fizeram de diferente?

BATISTA. China e Índia mantiveram controles de capital o tempo todo, antes e durante a crise. O Brasil, mais recentemente, no segundo mandato do Lula, adotou o controle quando necessário. Os três também mantiveram reservas muito elevadas, o que os ajudou a enfrentar os sobressaltos.

 

Mas a manutenção de reservas altas tem um custo.

BATISTA. O custo financeiro é significativo, sobretudo quando os juros praticados nos países são elevados internamente. Mas esse custo mais do que compensa os efeitos de choques internacionais. A experiência da crise mostrou que as reservas representam proteção importante. Uma das lições que os países tirarão do pós-crise, independemente das conclusões do FMI, é de que é necessário acumular reservas. A demanda por reservas do pós-crise será mais signiticativa do que era antes da crise.

 

Estudos de funcionários do fundo admitem metas de inflação mais altas e o controle de capital externo. Há pressões por mudanças dentro do FMI ?

BATISTA. Esses dois estudos, um sobre a revisão do pensamento macroeconômico e outro sobre controle de capital, são exemplo do que está acontecendo não só fora, mas também dentro do FMI, em decorrência da crise que abalou a credibilidade das políticas econômicas dos países desenvolvidos, o pensamento econômico dominante das universidades destes países, sobretudo dos Estados Unidos. Isso levou muita gente dentro do FMI a responder às pressões com uma indicação de que está disposto a rever doutrinas e dogmas.

 

Como estão revendo estas doutrinas?

BATISTA. Quando cheguei lá em maio de 2007, o pensamento dominante dentro do FMI rejeitava o controle de capital. Era até hostil. A tese era que os controles de capital eram ineficazes e/ou nocivos. Na mesma época, missões do fundo que vinham ao Brasil em consultas regulares criticavam o acúmulo de reservas que começou, no caso brasileiro, de forma mais intensa a partir de 2006. Hoje, o fundo reconhece a importância das reservas altas. Em 2007 ainda, o FMI queria que o Brasil reduzisse a meta de inflação e estreitasse o intervalo de confiança, que sempre foram maiores que em outros países. Felizmente, o Ministério da Fazenda não deu ouvidos a essas recomendações. Hoje o fundo recomenda aumentar.

 

Metas de superávit primário sempre balizaram acordos com o fundo. Em 2009, o Brasil abateu da meta gastos com investimentos. O FMI não pareceu contrariado.

BATISTA. O fundo antigamente enfatizava muito, talvez até demais, o ajuste fiscal. Com a crise centrada nos países desenvolvidos, houve um reconhecimento de que a política fiscal deveria ter um papel anticíclico, anti-recessivo e um endosso à flexibilização de políticas fiscais nos países desenvovidos e mesmo nos países em desenvolvimento que tivessem espaço para tal. É uma mudança significativa no fundo. Uma das críticas se que fez, com razão, ao fundo no passado é que ele recomendava medidas fiscais procíclicas, que agravavam a recessão.

 

As reformas em curso darão mais poder aos emergentes?

BATISTA. Uma primeira reforma aprovada em 2008 para cotas e votos que ainda precisa de ratificação do Senado brasileiro. Essa é uma das razões da minha vinda a Brasília. O Brasil foi um dos principais beneficiados neste acordo. Agora está em andamento a discussão de uma reforma mais ambiciosa que deve ser concluída até janeiro de 2011 e foi discutida também no âmbito do G-20. Está andando com dificuldade porque, para que os países em desenvolvimento tenham mais participação, alguém tem que perder espaço relativo. A Europa, de maneira geral, está sobrerepresentada. Isso reflete a realidade do pós-guerra, de quando o FMI foi criado. A Europa tinha outro peso no mundo.

 

E agora?

BATISTA. Os europeus se agarram a essas posições. O jogo básico é como convencê-los de que a legitimidade e a eficácia do FMI e do Banco Mundial dependem do aggiornamento dessas instituições para que elas reflitam a nossa realidade. A Europa tem quase um terço dos votos. O peso destes países em conjunto no PIB mundial é de 20%. Eles comandam nove das 24 cadeiras da diretoria do FMI. Além disso, por tradição, têm o direito de indicar o diretor-gerente. Estas instituições ainda estão sendo geridas de maneira obsoleta. Se quiserem ter um papel eficaz no pós-crise, têm que se adequar à realidade.

 

A Grécia está em situação difícil. Qual é o papel do FMI neste caso?

BATISTA. Alguns países europeus já recorreram ao fundo: a Lituânia, a Romênia e a Hungria. Mas, além de ser da UE, a Grécia está na zona do euro. Os europeus entendem que isso afetaria a credibilidade do euro. É um comportamento paradoxal. Quando países em desenvolvimento diziam que que havia um estigma de recorrer ao fundo, os europeus diziam que não. Eles não querem que a Grécia resolva pelo FMI. Entendem que seria uma perda de prestígio irreparável. O FMI é uma instituição controlada em larga medida pelos europeus. Apesar disso, consideram uma humilhação um país da zona do euro recorrer ao fundo. É uma inversão total. Hoje uma das clientelas mais importantes do fundo monetário são os brancos de olhos azuis europeus. A periferia morena, mulata, amarela virou credora do FMI.

 

O equilíbrio do peso dos países em desenvolvimento parece ter mudado com o aporte importante de recursos do Brasil, China, Índia e Rússia no âmbito do chamado New Arrangements to Borrow (NAB), um pool de reservas, criado em 1998, cuja finalidade é suplementar as cotas do FMI.

BATISTA. O fundo é uma instituição baseada em cotas. Em complemento às cotas, e em situações de emergência, você cria uns mecanismos de empréstimo para o fundo e um desses é o NAB. A negociação foi praticamente concluída e ele foi ampliado de maneira muito substancial. Para se ter uma ideia, terá US$ 600 bilhões. Os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China)s resolveram participar deste esforço coletivo e, ao resolver fazê-lo com uma soma significativa, terão posição inédita em termos de funcioamento do fundo. Os quatro países terão coletivamente poder de veto. Isso será válido para Estados Unidos, Japão e a Europa atuando em conjunto. É significativo e já reflete esse processo de redefinição do equilíbrio. O NAB é talvez o maior acordo financeiro da História porque será de US$ 600 bilhões e o Brasil entrará com US$ 14 bilhões.

 

Fonte: Brasil, mostra a tua cara

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