A recuperação e reestruturação da Fundação Cultural Palmares: Os desafios do movimento negro brasileiro pós desgoverno Bolsonaro

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Foto: Divulgação/ Fundação Cultural Palmares

Agora que vivemos novos tempos, em que novas perspectivas históricas e de relações sociais se fazem presentes, após todo terror de desmonte dos conjuntos de políticas públicas institucionais relacionadas a promulgação e defesa dos chamados direitos sociais e humanos, que se fez realizar no desgoverno Bolsonaro. Acredito ser importante as parcelas dos movimentos negros, em suas diferentes pluralidades e características, se colocarem enquanto agentes políticos decisórios que são tanta na defesa e manutenção da Democracia brasileira, através de suas práxis políticas reivindicatórias e combativas, no seu sentido de ações políticas cotidianas de negritude e antirracismo. Um conjunto de diferentes trajetórias e lutas, que acabaram por se constituir como um dos polos de enfrentamento e confrontação ao ideário ultraconservador que se instaurou, e foi estimulado, pelas forças políticas vitoriosas no pleito presidencial de 2017.  

O que não por um acaso, acarretou uma realidade de sistemáticas perseguições e ações de desmoralização em relação aos movimentos negros brasileiros e as suas pautas políticas, além da negação da importância histórica destas formas de representações sociais e culturais tão fundamentais ao próprio processo de constituição, desenvolvimento e modernização da sociedade brasileira. Toda pauta ou ação política dos movimentos negros, assim como de seus agentes intelectuais e atores políticos, passou a ser criminalizada em sua essência, taxada como inimiga da ordem social e contra a “nossa” verdadeira brasilidade, democraticamente racial, socialmente harmoniosa, livre dos conflitos e problemas raciais que abundam em outras terras!

Esse viés, de nítida inspiração fascista ao negar a existência do outro, de tudo aquilo que se opõe a sua ideologia e perspectiva histórica, em nome de um discurso unificador em que uma narrativa social e cultural hegemônica se faça perpetuar, sempre pela primazia de referendar os elementos de dominação de determinados grupos socias sobre outros, o que no Brasil significa a manutenção de um privilégio de raça, classe e gênero em que aquilo considerado “branco”, de origem europeia, sempre se efetiva como o referencial civilizatório que por todos deve ser, de maneira inconteste, seguido. Por isso sendo as práxis políticas e culturais negras – coletivas ou individuais – alvo de tantos ataques promovidos tanto de dentro dos órgãos institucionais do governo federal, como dos grupos civis de apoio e sustentação aos ideários racistas bolsonaristas. Desde grupos organizados de WhatsApp, das milicias digitais, passando pelos grupos de supremacistas brancos e neonazistas, até corporações midiáticas digitais e da grande imprensa, além de setores intelectuais e políticos que abraçaram de bom grado essa causa de combate ao “radicalismo negro” em terras nacionais.

Nunca houve tanto discurso de ódio e degradação as causas políticas negras, desde o período ditatorial civil-militar (1964-1985) não se tinha campanha tão explícita de desinformação e ódio, dirigida aos coletivos negros. Não havendo nem um verniz de formalidade em mascarar tal realidade, em que se defendia de fato os direitos de expressão de liberdade e de opinião aos racistas, não se condenava e muito menos se combatia o racismo, não havendo nenhuma campanha institucional ou até mesmo um conjunto de discursos nesse sentido, em – insisto – quatro anos de desgoverno Bolsonaro. Muito pelo contrário, o que tivemos foi a perseguição da intelectualidade negra, dos atores políticos e culturais oriundos das comunidades afro-brasileiras, desde as cidadãs e cidadãos mais simples, até sujeitos ativos de suas militâncias associativas e coletivas, pelo simples fato de ser e exercerem a sua humanidade, enquanto pessoas negras/pretas nascidas ou residentes no Brasil. Não sendo incomum até mesmo a morte dessas pessoas pelo fato de serem pessoas negras, num país de maioria negra, assassinadas por não condizer, por não se adequar, ao discurso e prática de se submeterem as diretrizes racistas institucionalizadas e estimuladas que pautaram o debate-embate político dos últimos anos.

Um dos exemplos dessa realidade de perseguição e, literalmente, apagamento físico e imaterial do ser negro no Brasil, de suas sapiências, lutas, pautas, reinvindicações,  resistências e (re)existências, se deu pelo desaparelhamento e sucateamento da Fundação Cultural Palmares (FCP), enquanto órgão tanto simbólico, quanto de concreta formulação de políticas publicas institucionais e geradoras de recuperação-preservação-fomentação-divulgação das diferentes formas e sentidos das culturas negras, em seus vários simbolismos e significados, como representações da existência de uma negritude brasileira radicalmente antirracista e antissistema, nada conciliatória e muito menos alienada de seu sentido de pertença coletiva e identitária, numa sociedade estruturalmente construída e desenvolvida pela negação e genocídio de suas populações “não brancas”, em especial as afrodescendentes.

Por isso, agora que os grupos políticos e movimentos sociais que atuaram pela derrota do desgoverno bolsonarista e consequentemente pela vitória da candidatura Lula, deve o movimento negro, inserir suas pautas e reivindicações ao processo de transição que se dá nesse exato momento entre o atual governo e a equipe representativa da futura gestão. Não enquanto elemento estranho a tal conjuntura, mas enquanto um dos principais responsáveis, organicamente articulado e ativo, pela vitória que se deu do campo democrático e progressista no pleito do último 30 de outubro de 2022.

O que nos situa esperar que ocorra uma recuperação, um aproveitamento das trocas de experiências, percepções, memórias e perspectivas que se fizeram presentes aos debates, ao qual tive a honra de participar, organizados pela “Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros” e o “GELEDÉS. Instituto da Mulher Negra”, e que deram forma ao seminário virtual “EM DEFESA DO LEGADO NEGRO:  Biblioteca da Fundação Cultural Palmares” realizada ao final de junho de 2021. Em que indignados ante a plena destruição da FCP, referências intelectuais, históricas e políticas do movimento negro brasileiro, em conjunto com novas pensadoras e pensadores afro-brasileirxs tornaram pública o seu não aceite ante toda aquela situação de abusos e desmandos, e o afirmar da importância em se defender aquela instituição enquanto símbolo da luta contemporânea das resistências negras no Brasil. Sendo que dentre tantas sugestões e formulações de compromissos, as que acredito devam se fazer presentes e colocadas a mesa, nessa etapa de gestação de um novo governo que se avizinha, e que se deu com a inegável e imprescindível atuação das coletividades negras organizadas, seriam:

a-) recuperar dos arquivos e do acervo bibliográfico da instituição, como por exemplo do conjunto de livros da biblioteca particular de Clóvis Moura que foi doada a instituição por sua família e que sofreu ameaça de despejo pelo presidente da FCP em 2021;

b-) disponibilizar todo o acervo da instituição para o público em geral, nesse sentido investindo na digitalização do seu acervo de fontes e referências, como forma de democratização e circulação de todo acervo bibliográfico, audiovisual e iconográfico pertencentes a FCP;

c-) realizar cursos, congressos, seminários e encontros presenciais-virtuais com temáticas relacionadas as culturas negras e negritudes brasileiras e afro-diaspóricas;

d-) reivindicar maior autonomia gestora e política, com total estrutura material e financeira, para o devido e pleno funcionamento da fundação, sem se atrelar aos interesses políticos de governos, de setores do movimento negro, mas sim em representar e realizar as demandas, -) atuar enquanto corpo técnico e de suporte, como órgão institucional e governamental, em apoio as comunidades quilombolas e remanescentes de quilombos, no sentido de recuperação, preservação e divulgação das produções de conhecimentos e saberes ancestrais e contemporâneos destas comunidades.

e-) atuar enquanto corpo técnico e de suporte, como órgão institucional e governamental, em apoio as comunidades religiosas de matriz africana, no sentido de recuperação, preservação e divulgação das produções imateriais de conhecimentos, além dos saberes ancestrais e contemporâneos que se dão a partir destas comunidades.

f-) estimular diálogos e aprender a conviver e respeitar as diferenças que existem e compõe as pluralidades e diversidades do movimento negro brasileiro, em especial de seus campos mais progressistas, a fim de se evitar que as disputas internas e desavenças abram brechas para o fortalecimento de ideários conservadores negacionistas em relação a existência do racismo no Brasil, ou que desmereça e criminalize as trajetórias coletivas de lutas e resistências afro-brasileiras;

g-) não deixar de contextualizar as lutas afro-brasileiras enquanto inseridas e inerentes aos infinitos caminhos gerados pela afro-diáspora;

h-) recuperar do símbolo da FCP enquanto uma instituição de preservação e divulgação de manifestações culturais, materiais e imateriais, das populações negras no Brasil. Enquanto instituição oficial geradora de políticas públicas que combatam efetivamente o nosso racismo estrutural e os seus efeitos em nossa sociedade;

i-) recuperar dos legados de lutas e das trajetórias que deram na constituição e desenvolvimento da FCP, assim como das diferentes gestões que geriram a instituição ao longo de sua história, contextualizando-as aos momentos históricos do país e do próprio movimento negro de cada época;

j-) recuperar e ampliar a FCP enquanto um local de estímulo e fomento a novas produções teóricas, a novos conhecimentos relacionados as culturas negras, as teorizações e práticas antirracistas e de negritude no Brasil;

k-) estimular, apoiar, promover atividades direta ou indiretamente relacionadas a FCP, por todas as regiões do país, dessa forma dando maior visibilidade e divulgando tanto as ações desenvolvidas ou geridas pela instituição, como os saberes, as sapiências e potências criativas-transformadoras que se dão pelas populações afro-brasileiras nas mais variadas partes do país;

l-) realizar audiências públicas e debates de maneira regular e constante, presencial e virtual, no sentido de tornar cada realmente pública e transparente a gestão da instituição.

Um conjunto de sugestões, de indicativos que acreditamos possam contribuir para a recuperação do papel histórico seminal que a Fundação Cultural Palmares realizou em toda a sua trajetória. Não no sentido de apagar ou renegar os desmandos que se deram durante a gestão do grupo liderado e simbolizado na figura de Sérgio Camargo, mas de enfatizar tal período como exceção na história de luta antirracista e pró negritude que sempre a caracterizou! E que os novos tempos que se anunciam na política gestora brasileira se de enquanto o momento de recuperação dessa sua verdadeira alma, dessa sua verdadeira essência!

Que a FCP recupere o seu lugar na história e sua primazia política, mas que não se caia no canto enganoso de que “aos poucos se colocará a casa em ordem”, que no momento “outras prioridades” se fazem pontuar. Pois o combate institucional de um governo que se apresenta enquanto democrático, numa frente ampla de viés antifascista, não pode deixar para depois o enfrentamento urgente que a naturalização e estímulo as práticas de racismo deixaram na sociedade brasileira nos últimos tempos. Enfrentar essa realidade é fundamental, e se faz primordial para sucesso de qualquer política governamental nesse sentido, o pleno funcionamento da FCP enquanto fomentadora e gestora de políticas públicas-institucionais que ditarão os rumos da nova gestão presidencial ao enfrentamento do racismo estrutural brasileiro.

E que o movimento negro nacional, em suas várias faces e sentidos, saiba dar conta de seus desafios que estão postos. Enfrentar a herança bolsonarista que se faz presente tanto nos campos formais e informais de nossa sociedade não é desafio fácil, muito pelo contrário. Viveremos uma constância de conflitações e tensões, e por isso a recuperação e reorganização da FCP se revela estrategicamente fundamental para as combativas que deverão ser realizadas pelos coletivos negros nos próximos anos. E essa política de combate não pode ficar à espera de se começar 2023, pois não temos tempo a perder ante aos ovos de serpente que não param de eclodir ao nosso redor.

Que saibamos estar preparados aos desafios que se já estão postos ao nosso horizonte, pois independente de qual governo esteja no poder, não temos mais tempo a perder ante a necessidade de se enfrentar, efetivamente, o racismo. Que não nos enganemos com essa vitória da última eleição presidencial, ela deve, sem dúvida, ser muito comemorada, extravasada, enaltecida, mas não deve ser o ponto final daquilo que almejamos e precisamos! São só os primeiros passos de uma retomada que ainda está muito longe do fim, mas que não pode deixar de ser trilhada, pois caso contrário, já sabemos o que nos espera! Ou será que não aprendemos nada com aquilo que passamos, e tanto sofremos, nesses últimos tempos?

Desse modo, que a FCP volte a ser o espaço de quilombagem entre os órgãos formais e institucionalizados da estrutura federal governamental, e não mais espaço de alienação e opressão gerida por aqueles que nem merecem ser classificados enquanto capitães do mato. Não merecemos ou esperamos menos do que isso! Ou será muita pretensão, ou ilusão, de minha parte? Desejar que a FCP volte a ser um espaço de fomento das resistências e potências negras, modernas e ancestrais, que dão forma e sentido a políticas públicas que tensionam, confrontam e superam as marcas que o racismo deixa na alma e no corpo da sociedade brasileira? 

Sinceramente, acredito que não! Depende de nós, vamos à luta!  Pois não temos nada a perder, mas temos tudo, TUDO, a ganhar! 

Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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