Ação afirmativa para afro-descendentes e democracia no Brasil

Por Wania Sant’Anna.

Considerando o quadro de desigualdade racial no Brasil, situação que atinge de forma tão singular e definitiva uma parcela substancial da população – os afro-descendentes – não há dúvida sobre o caráter salutar do debate público sobre o assunto. Isso demonstra o compromisso que devemos ter com as estratégias de fortalecimento da democracia e,igualmente, a necessidade de encontrarmos, oletivamente, as saídas sustentáveis de superação da desigualdade social no país.

Há cerca de três meses atrás, uma publicação editada por essa mesma Universidade,Universidade do Estado do Rio de Janeiro, me perguntou como eu avaliava os projetos de reserva de vagas para os alunos de escolas públicas e afro-descendentes. Hoje, como há três meses atrás, mantendo a mesmíssima opinião. Vejo a iniciativa como a única possibilidade de o Estado brasileiro demonstrar um efetivo interesse em superar as desigualdades raciais existentes no País. No que diz respeito às universidades, vejo como uma medida de caráter singularmente estratégico e de compromisso em superar as desigualdades raciais no Brasil,expressar à sociedade brasileira sua função social e, ao mesmo tempo, reconhecer a importância que as organizações do movimento depositam junto essas universidades ao considerá-las como instituições fundamentais à institucionalização de políticas de ação afirmativa para a população afro-descendente.

Nesse sentido, as resistências até então apresentadas pelas universidades públicas,contrapondo-se a uma legítima demanda de um grupo social como os afro-descendentes, eu diria, comprometem o fortalecimento da democracia no país. Na verdade, é difícil deixar de reconhecer que as organizações do movimento negro têm expressado, em diversos momentos da história do país, o seu compromisso com a instituição de instâncias democráticas e que, na última década, são inúmeros os exemplos de reconhecimento de suas demandas. Assim, as resistências apresentadas pelas universidades públicas deveriam ser analisadas à luz desse contexto.

Na essência, não deveríamos esquecer o fato de a população afro-descendente constituir o grupo de menor acesso aos benefícios sociais na sociedade brasileira, não há como negar o caráter democratizador dessa política. Por outro lado, não deveríamos esquecer o fato de os afro-descendentes pagarem impostos como todos os demais cidadãos e constituir uma falta grave o fato de não ter garantido o direito de usufruir desses serviços de educação pública.

Na minha opinião, seríamos mais conseqüentes em nossas opiniões ao considerarmos a presença da população afro-descendente nos círculos das universidades públicas como uma oportunidade de ampliar as habilidades desse grupo e, conseqüentemente, ampliar a sua contribuição cultural, política, social e econômica ao país. Parece inadequado que as universidades públicas, corpo e docente e dissente, não tenham contato direto e no mesmo nível com outros segmentos de classe da sociedade brasileira. Não parece adequado que as universidades públicas brasileiras sejam constituídas na sua grande parte por segmentos que desconhecem, no contato cotidiano, a realidade cultural, política, econômica e social de um segmento que constitui 45% da população brasileira.

Como afro-descendente, eu diria que há muito a ser trocado, há muito a ser conhecido nessa relação. Há muito a ser afirmado como compromisso de responsabilidade recíproca e fortalecimento dos fundamentos da democracia, da igualdade, da eqüidade e, finalmente, bom senso.

Em artigo especialmente preparado para subsidiar os debates nacionais que precederam a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, eu mencionava que são raros os momentos dedicados à reflexão sobre as conseqüencias do preconceito e discriminação racial.

Junto ao grande público, a situação mais comum está relacionada à divulgação dos casos de discriminação e ofensas vividos por afro-descendentes em contato direto com pessoas brancas e/ou ditas brancas. Uma vez divulgados, não raro, o sentimento mais generalizado é a indignação.

Classificar o ato como expressão da ignorância e falta de educação também constitui um argumento fartamente presente. Em ambos os casos revela-se o apego ao ideal de democracia racial do povo brasileiro. Afinal, como é mesmo possível encontrar pessoas que não tenham absorvido as regras de convivência requerido ao ideal de democracia racial e, em situações cotidianas, exponham de forma tão inusitada o seu descontentamento e descompromisso com o esse ideal?

“Descupai-vos. Eles não sabem o que dizem!” Seria uma saída, além de baseada em princípios de fé, para fornecer a esses de compreensão limitada do ideal de democracia racial a oportunidade de redimir tanto a conduta quanto os valores interpretativos frente à população afro-descendente. No entanto, isso não é suficiente. Por que? Porque os casos divulgados são apenas a de um grande iceberg. Não é verdade que vivamos sob o manto da democracia racial e aqueles que discriminam são os mais expressivos exemplos da fragilidade do ideal.

Em 1995, quando o Instituto Data-Folha realizou o que denominou “a maior e mais ampla pesquisa sobre preconceito de cor no Brasil”, foi introduzida uma pergunta muito simples e direta sobre o assunto: “Na sua opinião, no Brasil os brancos têm preconceito de cor em relação aos negros?” Entre os entrevistados, 89% declaram que sim e, apenas 9% disseram que não. Entre os brancos os percentuais foram exatamente iguais. Entre os “pardos”, 88% disseram que sim e 10% disseram que não. Entre os pretos”, 91% disseram que sim e 8% disseram que não. Ou seja, o ideal, tanto para os brancos como para os afro-descendentes, é realmente frágil.

Nas três últimas décadas, as organizações do movimento negro têm sido incansáveis na demonstração de fatos que comprovam o tratamento diferenciado dispensado à população
afro-descendente. Neste sentido, essas organizações contribuíram para a destituição da idéia generalizada de que o Brasil “constituía” uma democracia racial. De fato, tomar para si a tarefa de dizer que não vivíamos sob uma democracia racial foi, antes de mais nada, um ato político de grande envergadura. Recusou-se, assim, o ideal de identidade nacional baseado na exclusão de um grupo que, sem sombra de dúvidas, constitui hoje, tanto quanto no passado,recurso humano impossível de ser ignorado para qualquer pessoa preocupada com o destino do país.

Enfim, a despeito do que alguns setores tentam nos fazer crer, a crítica elaborada pelo movimento negro sobre a precariedade em que vive os afro-descendentes e suas propostas de superação desse quadro não significa alimentar divisionismo ou estabelecer privilégios infundados. Ao contrário, as demandas do movimento negro qualificam tanto o debate sobre a pertinência de políticas públicas adequadas às necessidades da população quanto o sentido real das políticas de desenvolvimento para o país.
As propostas de estabelecimento de políticas de ação afirmativa voltadas à população afrodescendentes são um bom exemplo. De fato, estamos vivendo um momento particularmente estimulante do debate sobre as questões sociais em nível global, sendo quase impossível mencionar quais análises e perspectivas visando a superação de problemas semelhantes não possuem fundamento adequado para a sua sustentação, aceitação e aplicação em nosso país.

Os acordos e consensos sobre as questões sociais ganharam prestígio internacional e reconhecimento suficientemente abrangente para não se deixarem abalar pela defesa dos particularismos nacionais. As experiências que culminaram em programas de ação têm sido responsáveis por uma elaboração mais coletiva sobre o conceito de desenvolvimento e pela renovação do entendimento sobre igualdade, eqüidade e participação social.

De fato, o que se tem mais claramente posto em xeque são as noções sobre o conceito de igualdade e o princípio das oportunidades iguais. O fundamental é ultrapassar as noções de cidadania política – eleger e ser eleito – para centrar-nos na idéia de cidadania social, ou seja, a prerrogativa de cada pessoa gozar de uma padrão mínimo de bem-estar econômico e seguridade social. É por isso que causa espanto e indignação as acusações de que o estabelecimento de políticas de ação afirmativa seja um privilégio. Afinal tem sido a população afro-descendente a parcela mais afetada no gozo de padrões mínimos de bem-estar econômico e seguridade social. Os mais recentes estudos sobre a situação social e econômica da população afro-descendente tem demonstrado isso de forma incontestável.

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