Afinal, quem morre de calor no Brasil?

“Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual
Calor insuportável, 28 graus
Faltou água, já é rotina, monotonia.
Não tem prazo pra voltar, hã!
Já fazem cinco dias”.

Racionais MC’s 

Eu cresci em Itaquaquecetuba, periferia de São Paulo, anos 90. Ouvir alguma música dos Racionais pelas ruas da quebrada era comum. Hoje entendo que os versos de “Um homem na estrada” eram, na verdade, um raio-X preciso daquele Brasil de então1. Um país desigual, alicerçado em violências históricas e abismos sociais. Passaram-se três décadas. Houveram alguns avanços. Mas, tenho a impressão que muitas dessas feridas permanecem abertas, num cenário ainda mais complexo, de elevado crescimento populacional, urbanização desordenada, precarização das relações de trabalho, agravamento das desigualdades e (como se não bastasse) crise climática

O ano de 2023 foi o mais quente já registrado2. Experimentamos um planeta 1,48°C mais quente, em comparação aos níveis pré-industriais (1850-1900). Nunca estivemos tão perto do limite de 1,5ºC estabelecido pela ciência como “seguro” para evitar as consequências mais graves do aquecimento global. As mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão aumentando a frequência, a duração e a magnitude dos eventos climáticos extremos, como secas severas, ondas de calor, incêndios florestais e episódios críticos de poluição do ar, como os que ocorrem em boa parte do Brasil enquanto escrevo esse texto. Isso tem impactos diretos na biodiversidade e em setores da nossa sociedade, como a infraestrutura das cidades, a produção de alimentos e geração de energia, a economia e a saúde pública3

Embora generalizados, no entanto, esses impactos não se distribuem de maneira equitativa. Populações vulnerabilizadas, que já enfrentam os maiores desafios nas dinâmicas sociais, segregadas e despotencializadas na vida política e econômica, sempre serão as mais afetadas4. Diante desse contexto, pretendo discutir aqui algumas interfaces entre as desigualdades estruturais que fundamentam a construção das cidades brasileiras e os impactos dos eventos climáticos extremos na saúde humana, em particular as ondas de calor, períodos de três ou mais dias consecutivos com temperaturas acima de um limiar esperado para uma determinada região).

Antes de tudo é preciso entender que o calor mata (489 mil pessoas todos os anos globalmente5). Isso porque a exposição prolongada às altas temperaturas, combinada a fatores como alta umidade, baixa circulação do ar e maior quantidade de radiação solar, pode levar ao chamado estresse térmico6, uma condição que compromete os mecanismos de termorregulação do corpo humano, provocando aumento da temperatura corporal e da frequência cardíaca. O estresse térmico causa desidratação, náuseas e dores de cabeça, pode agravar doenças pré-existentes, aumentando o número de internações hospitalares e, em alguns casos, levar à morte prematura. Na saúde perinatal, a exposição ao calor excessivo pode trazer efeitos adversos à gravidez, como prematuridade e baixo peso ao nascer, natimortalidade e mortalidade materna7. O calor compromete até mesmo a saúde mental, aumentando a irritabilidade, o estresse, a ansiedade e as hospitalizações por transtornos mentais, como esquizofrenia e depressão, e também está associado a elevação das taxas de suicídio8.

Apesar dos números alarmantes e do consenso científico sobre esses impactos, sinto que o calor ainda não recebe a mesma atenção que outros desastres, como deslizamentos de terra e inundações. Isso porque o calor é uma ameaça invisível e seus efeitos subestimados. A associação da causa de morte à exposição excessiva ao calor raramente é indicada nos registros de óbitos (embora exista um código CID específico para seu preenchimento). Em geral, mortes atribuíveis ao calor são classificadas como doenças cardiorrespiratórias, condições como diabetes, doenças renais, entre outras. O calor mata silenciosamente.

Recentemente trabalhei em um estudo9, em uma colaboração do LASA-UFRJ com a Fiocruz, a UnB e a Universidade de Lisboa. Estimamos nesse estudo que cerca de 50 mil pessoas morreram de forma prematura nas áreas urbanas do Brasil devido às altas temperaturas entre 2000 e 2018. Diante desse resultado assustador, decidimos nos debruçar sobre uma questão que considero de extrema importância:

Quem é mais vulnerável aos eventos extremos de calor nas cidades brasileiras?

Vimos que os idosos integram o grupo mais atingido, semelhante ao que foi observado em estudos anteriores conduzidos nos Estados Unidos e na Europa. Isto deve-se ao seu sistema termorregulatório mais fragilizado (semelhante às crianças, que têm mecanismos de termorregulação ainda em desenvolvimento). Pessoas com condições crônicas, como diabetes e asma, e pacientes em tratamento de câncer também são mais vulneráveis. Observamos, no entanto, que o calor pode ter efeitos na saúde de todas as pessoas, inclusive aquelas consideradas saudáveis e em qualquer idade, mas sobretudo as que dispõem de menos recursos de adaptação.

Evolução temporal do número anual de ondas de calor (HWs) durante o período de 1970 a 2020 nas regiões metropolitanas (RM) do Brasil, classificadas por latitude (decrescente com a distância do Equador)/Plos One

Nessa pesquisa, analisamos cerca de 9 milhões de registros de óbitos do Sistema Único de Saúde (SUS) e dados históricos do Instituto Nacional de Meteorologia para as 14 regiões metropolitanas mais populosas do país, incluindo indicadores demográficos e socioeconômicos da população. O que esses dados revelaram foi que, proporcionalmente, as mulheres, as pessoas pretas e pardas e aquelas com menor nível de escolaridade morrem mais, ainda que expostas aos mesmos índices de calor excessivo. Em São Paulo, por exemplo, a probabilidade de morte durante uma onda de calor entre pessoas com baixa escolaridade (4 anos ou menos) é 10% maior em comparação àqueles que tiveram acesso ao ensino superior. Mas a disparidade entre esses dois grupos atinge valores ainda maiores em cidades como Rio de Janeiro (aproximadamente 25%), Porto Alegre (42%), Belém (53%), Manaus (62%) e Recife (96%). Considerando a influência da variável cor da pele no impacto do calor na saúde, identificamos que o excesso de mortes entre pessoas pretas e pardas foi maior que entre brancos na mesma faixa etária, com diferenças significativas em metrópoles como Rio de Janeiro (10%), Belo Horizonte (15%), São Paulo (17%), Manaus (33%), Recife (40%), Belém (44%), Brasília (60%), Goiânia (80%) e Curitiba (.92%). Na maioria dos casos, essa disparidade entre negros e brancos é maior entre as mulheres. No caso mais extremo, na região metropolitana de Cuiabá, identificamos que a probabilidade de uma mulher idosa morrer devido a exposição prolongada ao calor excessivo é 203% maior se essa mulher for preta ou parda, comparado ao impacto do que se a mesma for branca.

Diferenças socioeconômicas na mortalidade relacionada ao calor/ Plos One

Vale ressaltar que a cor da pele não deve ser entendida aqui como um fator fisiológico na relação entre calor e mortalidade, mas sim um determinante social de saúde, um indicador socioeconômico que numa perspectiva interseccional nos mostra como as desigualdades sociais e de gênero se entrelaçam ao racismo estrutural e determinam quem é que morre quando o clima se torna uma ameaça à vida. Pretos e pardos são a maioria da população brasileira, mas são também aqueles que têm piores índices gerais de saúde, piores condições de acesso a serviços médicos, níveis mais altos de insegurança alimentar, entre outros fatores. Inequidades que refletem em menores expectativas de vida e maiores taxas de incidência de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão10, que são fatores de risco durante eventos extremos de calor.

É importante dizer que as cidades em si já são mais sensíveis às altas temperaturas, devido ao efeito de ilha de calor urbano. Materiais como concreto e asfalto alteram o microclima, fazendo com áreas urbanizadas sejam até 5oC mais quentes do que regiões rurais adjacentes, amplificando ainda mais os efeitos do aquecimento global. Mas as cidades são também ilhas de desigualdades. As quebradas são mais populosas e muito menos arborizadas que os bairros ricos priorizados pelas políticas de planejamento urbano, têm condições de moradia precarizadas e sofrem com interrupções frequentes de abastecimento de água e energia, sobretudo durante eventos climáticos extremos. Somado a isso, que vive às margens se desloca muito mais, dispondo de um sistema de transporte público precário, pouco ou nada adaptado às altas temperaturas. São mulheres e homens que mantêm a engrenagem do sistema funcionando enquanto dedicam sua vida ao trabalho, muitas vezes expostas ao sol, muitas vezes em condições insalubres, tornando-se ainda mais vulneráveis ao calor. São diversas camadas que se sobrepõem, amplificando os impactos das mudanças climáticas e exacerbando ainda mais as desigualdades no Brasil.

Estamos diante de uma realidade desafiadora. Sabemos que todos os cenários futuros de mudança do clima preveem um aumento ainda mais acentuado da exposição da população urbana brasileira aos eventos climáticos extremos (não apenas das ondas de calor). Planos de adaptação e mitigação são urgentes. Isso inclui o aprimoramento dos sistemas de alerta e monitoramento de desastres, integrando os diferentes setores envolvidos, adequação das infraestruturas urbanas, elaboração de protocolos de ação (antes, durante e depois dos eventos) e incorporação de estratégias de mitigação no planejamento das cidades (como a implementação de corredores verdes nas regiões mais populosas  e investimento em alternativas de mobilidade urbana, visando reduzir as emissões de gases de efeito estufa). Além disso, é necessário fortalecer o SUS, de modo a adaptar e preparar o sistema e os profissionais de saúde para os eventos climáticos extremos, em particular aperfeiçoando as políticas de vigilância em saúde e atenção primária, integrando informações meteorológicas e aprimorando a capacidade de detecção precoce de desastres. Entretanto, o impacto desproporcional do calor entre mulheres, pretos, pardos e os mais pobres evidencia que essas ações precisam estar alinhadas à elaboração de políticas efetivas de redução das desigualdades sociais e de gênero e de combate ao racismo estrutural no nosso país, promovendo justiça social e climática. 

Quando os Racionais retratam um lugar “equilibrado num barranco, um cômodo mal acabado e sujo, porém seu único lar, seu bem, seu refúgio, um cheiro horrível de esgoto no quintal” e alertam que “se chover será fatal”, apresentam (há trinta anos atrás!) um diagnóstico enfático de como as violências e o descaso do estado se conectam diretamente à vulnerabilidade da população negra e periférica aos eventos extremos. Quando relatam que “até o IBGE esteve aqui e nunca mais voltou, numerou os barracos, fez uma pá de pergunta e logo depois esqueceram”, denunciam como políticas públicas pensadas de forma vertical sem a participação popular são ineficazes. Nesse sentido, acredito que tais estratégias precisam levar em conta os conhecimentos e as soluções que estão nos territórios, ouvir o que dizem os movimentos sociais e lideranças comunitárias, respeitando os saberes locais. Afinal, nosso povo dispõe de tecnologias ancestrais que têm resistido há séculos aos fins do mundo, apontando caminhos para que ainda seja possível sonhar algum futuro.

Referências

  1. RACIONAIS MC’s. Raio-x. São Paulo: Zimbabwe Records, 1993. Disco de vinil.
  2. WMO confirms that 2023 smashes global temperature record. WMO https://wmo.int/news/media-centre/wmo-confirms-2023-smashes-global-temperature-record (2024).
  3. IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) (2021). Weather and Climate Extreme Events in a Changing Climate. In Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Cambridge University Press. doi: 10.1017/9781009157896.013.
  4. IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) (2022). Poverty, Livelihoods and Sustainable Development. In: Climate Change 2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Contribution of Working Group II to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press. doi: https://doi.org/10.1017/9781009325844.010
  5. Zhao et al, 2021 Global, regional, and national burden of mortality associated with non-optimal ambient temperatures from 2000 to 2019: a three-stage modelling study https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34245712/
  6. Cramer MN, Jay O (2016) Biophysical aspects of human thermoregulation during heat stress. Auton Neurosci 196:3–13. https://doi.org/10.1016/j.autneu.2016.03.001
  7. HA, S. The Changing Climate and Pregnancy Health. Current Environmental Health Reports, v. 9, p. 263–275.
  8. Thompson, Rhiannon & Lawrance, Emma & Roberts, Lily & Grailey, Kate & Ashrafian, Hutan & Maheswaran, Hendramoorthy & Toledano, Mireille & Darzi, Ara. (2023). Ambient temperature and mental health: a systematic review and meta-analysis. The Lancet Planetary Health. 7. e580-e589. 10.1016/S2542-5196(23)00104-3. 
  9. Monteiro dos Santos D, Libonati R, Garcia BN, Geirinhas JL, Salvi BB, Lima e Silva E, et al. (2024) Twenty-first-century demographic and social inequalities of heat-related deaths in Brazilian urban areas. PLoS ONE 19(1): e0295766. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0295766
  10. Oliveira, Larayne Gallo Farias, et al. “Reflexões e perspectivas das desigualdades raciais e a saúde da população negra.” Revista JRG de Estudos Acadêmicos 7.15 (2024): e151188-e151188.

Djacinto Monteiro dos Santos é pesquisador do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais no Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LASA-UFRJ). Físico, mestre e doutor em Física Aplicada pela Universidade de São Paulo, sua pesquisa aborda temas relacionados a poluição do ar em áreas urbanas, eventos climáticos extremos e impactos socioambientais, com ênfase na interface entre clima e saúde pública. Atua também como educador e realizador audiovisual, articulando cinema e educação ambiental.

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