A agressão tem data e hora marcada: fins de semana são dias com mais ocorrências

Levantamento da Secretaria de Segurança mostra que 37% das ocorrências de agressões e mortes dentro de casa acontecem no fim de semana. A maioria das vítimas é mulher. Além disso, elas sofrem com a reincidência dos companheiros

por Júlia Campos e Pedro Grigori para o Correio Braziliense

A agressão tem data e hora marcada. A partir das 18h de hoje, começa um período crítico e de agonia para uma parcela de vítimas de violência doméstica, a maioria mulheres, que, possivelmente, se estenderá até as últimas horas da noite de domingo. Dados da Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social estimam que 37% dos casos ocorram em fins de semana. No domingo passado, apenas a Polícia Militar recebeu 147 chamados para conter conflitos dentro das casas. Além disso, em 2016, foram ajuizados 34 mil processos relativos à violência doméstica no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).

Para complicar esse cenário, apenas nos três primeiros meses de 2017, 117 agressores foram reincidentes, em um ciclo de violência que, em certas circunstâncias, só chega ao fim com a morte de um dos envolvidos. Exemplo disso aconteceu com Samantha Santos, 37 anos. Vivendo em união estável com Marcelo Camargos, 46, ela recorreu ao amparo judicial três vezes em 13 anos. O companheiro chegou a ficar preso quatro anos, mas nem isso fez com que acabassem as agressões. Após cumprir pena, o casal reatou, e os ataques ficaram piores, chegando ao ponto de Marcelo bater na companheira com um martelo, quebrando diversos dentes dela.

Após ultrapassar todos os limites dentro da relação, a intervenção veio por meio do filho de Samantha, que, desde os 5 anos, assistia ao sofrimento da mãe. O ponto final ocorreu nesta semana. Durante mais uma briga, Daniel Santos, 18, desferiu 29 golpes de faca contra o padrasto.  Desde a madrugada de terça-feira, Daniel está preso, e a mãe desapareceu. De acordo com Thiago Pierobom, promotor da 2ª Promotoria de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do DF, dentro do sistema Judiciário, a prisão do agressor não é regra nem sempre resolve a situação. “A obrigação do Estado é sinalizar que esses atos são inadmissíveis e dar uma resposta para as vítimas. É importante que o encarceramento esteja associado a outras intervenções de políticas públicas”, alerta.

Segundo o promotor, o ideal seria adotar medidas como acompanhamento para que as vítimas se reconstruam emocional e psicologicamente, estratégias para monitorar as medidas protetivas e, principalmente, trabalho de responsabilização do agressor. “Não basta condená-los criminalmente. Eles precisam entender que isso é errado, pois, senão, os indivíduos continuarão a repetir os atos e achando que a condenação é injusta”, explica.

Proteção

Somente em 2016, 12.702 pedidos de medida protetiva com urgência chegaram ao TJDFT. Em casos reincidentes, mesmo quando a vítima desiste do processo, é possível que a ação seja levada adiante. O juiz Domingos de Araújo, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Ceilândia, conta que, quando há violência física, um exame de corpo de delito pode servir como prova, levando o agressor à condenação. “A desistência ocorre porque, muitas vezes, as vítimas desistem da acusação, acreditando que passaram por um episódio isolado e que o companheiro mudou. Outro ponto importante é que a mulher não busca vingança, ela não tem interesse em vê-lo preso. O que ela quer é se livrar daquele relacionamento desgastado, o qual ela não consegue fugir por estar com um indivíduo possessivo”, detalha.

Entre os principais motivos que levam as vítimas a retirarem as acusações estão a dependência emocional; a ideia de que precisa do parceiro para ser feliz; a dependência econômica; a promessa de mudança; e a vergonha de expor publicamente a situação afetiva. Gláucia Diniz, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB) conta que medos como o de cortar os laços com o companheiro ocorre em todas as classes sociais. “Muitas vezes, a mulher continua na relação para garantir a sobrevivência. Quando ela tem uma condição financeira baixa, o receio é de que ela e os filhos passem fome. Quando é alta, acreditam que, ao romper aquele vínculo, perderão aquele estilo de vida”, afirma

Segundo a psicóloga, a dependência emocional acaba sendo mais forte. “Acontece que a mulher convive com um homem que a agride durante a noite, mas, no dia seguinte, dá presentes e a trata bem. Isso se repete até que chega a um ponto em que a mulher passa a duvidar do seu julgamento e se pergunta quem realmente é o homem com quem ela convive”, completa.

Esse foi o caso de Gabriela*. Com 56 anos, a empresária viveu 35 casada com João*. Segundo ela, só depois do divórcio entendeu a gravidade da situação em que vivia. “Casamo-nos quando eu tinha 18 anos. Ele foi o único homem da minha vida. Então, eu era muito ciumenta, pois ele sempre teve muitas amantes. E, sempre que eu reclamava, acabava agredida”, lamenta.

No começo, as agressões eram ocasionais, mas logo se tornaram frequentes. Se o jantar atrasasse ou se as roupas estivessem malpassadas, tudo era motivo para tapas e socos. No aniversário de 45 anos de Gabriela, o caso chegou ao conhecimento de familiares e vizinhos ao parar na delegacia. “Ele era muito discreto, me tratava bem na frente de quem era de fora, mas, em casa, só me chamava por apelidos e xingamentos. Aí, na manhã do meu aniversário, ele me agrediu e gritou muito alto. Um vizinho chamou a polícia, e todos acabaram descobrindo”, relembra.

Gabriela não quis denunciar o marido, e o casamento só chegou ao fim quando João decidiu deixar a casa para morar com uma amante. “Quando ele foi embora, eu me culpei muito, ainda achei que tivesse feito algo errado. Precisei de apoio psicológico para entender que a culpada não era eu”, relata.

O porta-voz da Polícia Militar do DF, major Michello Bueno, conta que muitas ocorrências começam como as de Gabriela. “São vizinhos ou familiares que ouvem a discussão e ligam para a polícia. Quando se trata de agressões verbais, atuamos como mediadores, mas, se aquilo se exaltar, podemos levá-los à delegacia”, esclarece.

*Nomes fictícios

Falhas na rede de proteção

» Uma mulher de 38 anos foi assassinada a facadas pelo ex-companheiro, em Samambaia, em novembro de 2016. A filha mais velha de Tatiane presenciou o crime, o que se configura como agravante, segundo a Lei do Feminicídio. Em 2013, a vítima havia feito uma denúncia contra o acusado.

» Em março de 2016, Jane Carla Fernandes Cunha, 20, moradora de Samambaia Sul, foi assassinada por Jhonata Pereira Alves, com quem teve um relacionamento de seis anos. O acusado chegou a mostrar a arma do crime para um primo da vítima, de 12 anos. Jane estava no banho e não teve tempo de reagir. A estudante de gestão pública havia denunciado o ex-companheiro, enquadrado na Lei Maria da Penha.

» O primeiro caso de feminicídio no DF foi registrado em 1º de junho de 2015. O policial militar reformado Geovanni Albuquerque Brasil, 49, matou a mulher, Conceição de Maria Lima Martins, 43, a socos. O crime ocorreu no apartamento do casal, no Guará, horas depois de os dois chegarem de um bar. Segundo relatos do acusado, que confessou o crime, e de testemunhas, o casal tinha problemas com álcool. O assassinato teria sido motivado por ciúmes. Após beber e discutir no bar, o casal foi para casa de táxi, por volta das 2h30. Chegando lá, as discussões se intensificaram, e Geovanni agrediu a companheira com murros. Embriagado, o acusado adormeceu, ao lado de Conceição, sem perceber que ela estava morta.

» Em 22 de outubro de 2012, Mariane de Oliveira Alves, 43, morreu uma semana depois de registrar ocorrência contra o ex-marido Fábio de Jesus Campos, 34. O casal estava separado havia quatro meses, mas ele não aceitava que ela se envolvesse com outra pessoa — a mulher havia iniciado um namoro dias antes. A vítima levou oito facadas, em Sobradinho.

» Em dezembro de 2008, Marcelo Rodrigues Moreira matou a facadas a ex-mulher Ana Paula Mendes de Moura, de 33 anos, no restaurante onde ela trabalhava, na 404 Norte. Ele invadiu o local vestido com um paletó, puxou um facão e seguiu em direção a Ana Paula, que estava no caixa. A vítima percebeu a chegada do ex-companheiro, correu para o banheiro, mas o encontrou fechado. Em seguida, recebeu uma facada nas costas. O casal conviveu por oito anos. Depois do término, Ana Paula registrou várias ocorrências por agressão contra Marcelo e tentou mantê-lo afastado, sem sucesso. Em 14 de junho de 2010, a Justiça condenou o acusado a 24 anos de prisão.

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