Álcool move violência doméstica

Novo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), feito com 7 mil famílias em 108 cidades do Brasil, comprova que o álcool funciona como “combustível” da violência doméstica. Nas entrevistas feitas durante um ano, os pesquisadores identificaram que em quase metade das agressões que acontecem dentro de casa (49,8%) o autor das surras estava embriagado. A relação entre bebida alcoólica e maus-tratos já era considerada pelos especialistas, mas a evidência científica foi comprovada nacionalmente só com o ensaio científico.

Por Fernanda Aranda do Estadão 

Foto:  Getty Images/iStockphoto

“Ele tomava seus goles de pinga e virava monstro, me batia na frente de qualquer um. Não respeitou nem quando estava grávida. Tenho as marcas em todo corpo”, diz Maria, hoje com 52 anos, moradora da periferia da zona sul de São Paulo, que apanhou do marido por três décadas, sempre calada. Nunca denunciou o companheiro – nem quando a rede de delegacias da mulher foi criada. “E no hospital, sempre inventava uma desculpa diferente para meus machucados. Uma hora caía da escada, outra inventava que escorregava no banheiro”, diz ela, que não sabe explicar porque tolerou as surras durante tanto tempo. “Primeiramente, era amor. Depois, não sei.”

A tolerância à agressão também é decifrada pela associação entre violência e álcool, afirma o autor da pesquisa da Unifesp, o psicólogo Arilton Fonseca. “É muito mais fácil perdoar quando o agressor bebeu. A vítima considera o álcool o culpado e não o violentador. Acredita que, quando sóbrio, a rotina de violência cessa.” No mesmo estudo, foi evidenciado que violência impulsionada pela bebida alcoólica persiste, na maioria das vezes, por mais de 10 anos.

Outro aspecto revelado na pesquisa é que, apesar de mais frequentes os casos nas classes sociais mais baixas, o poder aquisitivo não imuniza o problema. Dos agressores bêbados, 33% eram de classe média e 17%, de classe alta. “A violência caseira é democrática. Mas a exposição do problema não”, avalia a subsecretária nacional de enfrentamento da violência da mulher, Aparecida Gonçalves. “Mulheres de classe A e B dificilmente vão à delegacia e conseguem maquiar as marcas da violência. Viajam para esconder o olho roxo, procuram serviços particulares, que são blindados dentre os números públicos.”

Nos dados do Disque-Denúncia 180 – que recebe ligações de todo País sobre violência doméstica, foi apurado que 48,7% das vítimas agredidas não dependem economicamente do agressor, o que, para Aparecida Gonçalves, mostra que o dinheiro não é fator principal e exclusivo para que o ciclo de agressão seja perpetuado.

A estudante de enfermagem Sandra, de 36 anos, que sempre morou em casas de classe média e atualmente está na Água Rasa, zona leste da capital paulista, é uma das faces que mostra a “democracia” da agressão doméstica. “Durante o primeiro ano de casamento, meu marido nunca encostou o dedo em mim, mas depois não consigo lembrar de um fim de semana que fiquei sem apanhar”, conta. Ainda que a sessão violenta acontecesse mesmo quando o marido estava sóbrio, se o álcool fosse mais um componente, “a violência aumentava e ficava mais cruel”.

A explicação para o álcool servir como impulso para as agressões, que não ficam restritas às mulheres e chegam aos filhos também, é fisiológica, explica o pesquisador do Departamento de Medicina Legal da Universidade de São Paulo (USP), Gabriel Andreuccetti. Segundo ele, a bebida etílica chega ao cérebro, aguça o sistema nervoso simpático, rebaixa a crítica e aumenta a agressividade. A ressalva dos especialistas é que tanto violência doméstica quanto consumo de bebidas alcoólicas são fenômenos complexos. No geral, um funciona como fósforo aceso dentro de um barril de pólvora do outro. “Por isso, a minha proposta é fazer maior diálogo entre o serviço de atendimento de dependência e o serviço de violência”, diz o pesquisador da Unifesp. “Hoje, um caminha isolado do outro, o que permite que violência e álcool andem sempre juntos.”

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