Alegoria da cidade – Por: Suzana Varjão

– Quem é você, adivinha…

Ao soarem os primeiros acordes do bloco, o formigueiro multicolorido agita-se. Braços erguidos, acompanha, em uníssono, as estrofes do velhohit carnavalesco. A Cleópatra loura acerca-se da havaiana morena, sorri, estende as mãos, canta, a plenos pulmões.

-…se gosta de mim…

O Batman barrigudo sai metendo o cotovelo, abrindo caminho (vai sem Robim. Não parece contaminado pela alegria coletiva); a enfermeira de bigode segura a saia da bailarina de pernas peludas e rodopia, rodopia, rodopia…

– O amor de Julieta e Romeu. O amor de Julieta e Romeu. Igualzinho ao meu e ao seu…

A luz da câmera de uma TV encandeia a multidão. O samurai vira o rosto, cutuca o baixinho de sunga preta, vai saindo de fininho. O cortejo segue, pelas ruas bêbadas de luz, luxúria e som.

O Menino nem-tão-menino-assim Maluquinho entorna a lata de cerveja, joga-a no chão. Um homem abaixa-se, pega o recipiente e sorve-o sofregamente. É negro e esquálido. Veste colete verde numerado e bermuda jeans estilo esfarrapado. No rosto, uma cicatriz.

Após o gesto rápido, furtivo, o moço retorna ao posto de trabalho, junto a outras dezenas de mulheres e homens, quase todos negros e fardados, que margeiam o mundo de fantasia do bloco.

Eles quase não vêem o que acontece à volta. Os olhos de quase todos varrem, ansiosos, o chão. Espreitam latas vazias, que recolhem, amassam e colocam nos sacos de lixo amarrados ao cós da calça.

– Cadê a Bahia na palma da mão…

Belo, o coro de palmas que acompanha o refrão. Parece saudar o casal que, alheio aos esbarrões, troca longos e ardentes beijos. Ele, vestido de minissaia. Ela, de Superman. O cheiro de lança-perfume já empesta o ar.

O short cor-de-abóbora e minúsculo desenha as formas da garota que se insinua para o cordeiro. Ele – tênis quadriculado, touca de crochê azul – passa as mãos em seus cabelos esticados. Ela tenta entrar na corda. Ele se desculpa. Ela se chateia.

Do lado de dentro, um rapaz louro, de olhos azuis, bermuda florida, sandálias alpercatas e rabo-de-cavalo, tenta acompanhar o ritmo de uma morena cabo-verde. Pernas, corpo, cabeça e braçosem descompasso. Elari. Faltam-lhe dois dentes.

***

– Tem gente de toda cor/ tem raça de toda fé/ guitarras de rock’n’roll, batuque de candomblé…

[…]

Um homem pula para o lado de dentro da corda. Os seguranças acorrem, mas ele é mais rápido. Como um raio, corta o bloco e desaparece nas areias da Barra, entre o Porto e o Farol. Uma mulher tenta o mesmo, mas é impedida pelos cordeiros.

– Ele me roubou, ele me roubou! (ela desespera-se).

– Dandalunda maimbanda coquê!

O refrão da música incendeia a multidão. Dandalunda é uma representação de Oxum, rainha das águas doces e revoltas, como as cachoeiras. No sincretismo religioso, é Santa Cecília, a padroeira da música. Mais afrobaianidade, impossível. Mas os baianos não parecem lá saber o que cantam…

– Cangalunda daindanda coqueiro (um tenta)

– Bandalunda gaindanda coquê! (outro repica)

E entre bebês-cotone, palhaços, vikings, freiras, índios, homens das cavernas, vampiros, coelhos, diabos e anjos, a torrente humana chega ao largo do Farol. Do alto de um dos muitos prédios – quase todos silenciosos, de poucas janelas iluminadas – chove papel prateado.

Embaixo, três garotos, braços dados, assistem à celebração. Estão imóveis, sérios, mudos, agarrados uns aos outros. Devem ter entre 7 e 10 anos. São negros, carregam sacos azuis de lixo semi-carregados de latas. Estão descalços.

– Viveeeer e não ter a vergonha de ser feliz…

O bloco dobra o largo do Farol ao som de Gonzaguinha.

 

[1] VARJÃO, Suzana. Alegoria da cidade. A Tarde, Salvador, 3 mar. 2003. Caderno 1, Cidade, p.2.

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