Além do Fio – A estética negra e o racismo

“Para além dos fios”, artigo da Marcelle Felix, do Observatório de Favelas, discute o uso do cabelo crespo e black power e o combate ao racismo, além de compartilhar experiências de coletivos e pesquisas que usam as representações do cabelo nas suas atuações e discussões

 Artigo publicado por Marcelle Felix, da comunicação do Observatório de Favelas, organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) localizada no conjunto de favelas da Maré, discute a estética negra por meio da representação do cabelo black power.

Além de discutir as relações sociais, o racismo e o desafio daquele que decide reafirmar a sua essência usando o cabelo afro de forma natural, Marcelle compartilha a experiência e discussões de coletivos e pesquisas na área.

Um desses coletivos é o “Meninas Black Power”, do Rio de Janeiro, que busca a valorização dos cabelos crespos naturais, apresentando diversos penteados e formas de usa-lo, além de promoverem debates e campanhas de reconhecimento e uso do cabelo afro em visitas a escolas de todo o país, priorizando os territórios periféricos.

Na área acadêmica, a pesquisa desenvolvida por Nilma Gomes e publicada no livro Corpo e Cabelo Como Símbolos da Identidade Negra (2006, editora Autência) é citada por Marcelle, afirmando que o cabelo afro e a cor da pele negra ganharam um significado supra indivíduo, atingindo o grupo étnico que pertence, em especial para as mulheres negras.

O artigo segue discutindo e apresentando visões sobre a significação do cabelo afro e o desdobramento de grupos, coletivos, indivíduos e discussões que buscam ampliar o seu reconhecimento e combater o racismo.

Por Marcell Felix para o Observatório de Favelas

Para além dos fios

No Brasil, onde é possível perceber uma grande variedade de fenótipos, o conjunto cor da pele e cabelo se torna um dos principais divisores de água no que diz respeito à classificação do que antes chamávamos de raça. De acordo com a pesquisa de Nilma Gomes no livro Corpo e Cabelo Como Símbolos da Identidade Negra, o fenótipo de uma pessoa não pode ser considerado como um simples conjunto de elementos biológicos, porque são eles que expressam racismo e desigualdade racial.

Apesar de os brasileiros serem em sua maioria pretos e pardos, o padrão de beleza corporal é branco. Portanto, no Brasil – para além da origem – a cor da pele, a textura do cabelo e os traços físicos são características fundamentais para determinar se um indivíduo pode sofrer mais ou menos racismo. Nesse contexto, segundo os estudos de Nilma Gomes, a cor da pele e o cabelo afro ganham um significado que ultrapassa o indivíduo para atingir o grupo étnico ao qual pertence, tomando ainda maior importância para mulheres negras.

Apesar do preconceito, há um grupo de mulheres que segue na valorização da estética negra e na reafirmação do cabelo afro. A blogueira Yasmin Thayná, de 21 anos, que passava química nos cabelos desde os cinco anos de idade, explica de forma poética no seu conto Mc K-bela a sucessão de ofensas direcionadas aos seus cabelos desde a infância e sua trajetória para abandonar a química e deixar seus fios naturais.

A blogueira afirma que não gostava de passar produtos químicos no cabelo, “Nunca me senti bonita usando aquilo porque era uma sessão de horror mesmo, é muito ruim não deixar alguém escolher ser quem gostaria de ser”, disse. Para ela, o processo de alisamento dos fios se apresenta como uma imposição para as mulheres negras, enquanto deveria ser uma questão de escolha.

Hoje em dia, Yasmin usa o seu conto, sites da internet, além de fazer um filme sobre essa temática da estética negra para ressignificar e revalorizar o cabelo crespo, que costuma ser visto de forma estigmatizada. “Para mim, o cabelo afro é símbolo da minha resistência como mulher negra. Mc K-bela é um personagem que inventei e que conta a história de todas as meninas negras de periferia (várias me escreveram dizendo que passaram pelo mesmo do que eu)”, contou.

Também usando a internet como espaço para valorizar a estética negra, surgem coletivos, como as Meninas Black Power, que estimulam mulheres a valorizarem os fios crespos naturais, mostrando diferentes formas de usar o cabelo e como cuidar dele. O coletivo ainda visita escolas, principalmente em zonas periféricas, em diferentes estados do país ensinando o respeito sobre as diferenças e estimulando o uso do cabelo afro.

Segundo as Meninas Black Power, há um padrão branco de beleza que desvaloriza e oprime mulheres negras. “O coletivo surgiu por notar a forte opressão que há em torno de indivíduos negros, sempre forçando um padrão branqueado e a não aceitação de características que são naturalmente negras”, explicou. Para elas, o cabelo afro conta uma história, além de ser um símbolo de luta e resistência.

De acordo com a pesquisa “Para Ficar bonita tem que sofrer!” – A construção de identidade capilar para mulheres negras no nível superior realizada pela socióloga Luane Bento dos Santos, o cabelo ultrapassa o campo do individual para atingir o coletivo. Segundo seus estudos, o cabelo é signo de representação cultural consciente ou inconsciente em diversas sociedades. Por meio de penteados, raspagem, ou do ato de não pentear os cabelos para que embolem, as culturas exercem distinções de sexo, classe, religião e etnia.

Ainda segundo a pesquisa, o cabelo faz parte não só de um componente estético, mas também cultural, podendo atingir os campos religioso, étnico, social, político e das preferências pessoais – que estão relacionadas direta ou indiretamente à classe social. Além disso, a pesquisa mostra que os fios podem se relacionar às demarcações e às delimitações internas hierárquicas das sociedades. Sendo um dos símbolos mais notáveis de identidade individual e social o cabelo consolida o significado do seu poder por ser físico e pessoal; e também por, apesar de pessoal, ser mais público do que privado.

Dessa forma, os coletivos e militantes que se utilizam de meios de comunicação para valorizar a estética negra e sua história fazem uso de elementos pessoais que extrapolam o pessoal para chegar ao coletivo. “Essa coroa é quem me faz acreditar que precisamos estar fortes. Essa coroa foi quem me deu a chance de me olhar no espelho após mais de dois anos sem conseguir olhar para mim e dizer: como estou bonita! Como somos lindas! Porque o mais importante de ser bonita é se sentir bonita.”, concluiu Yasmin Thayná.

 

 

Fonte: Brasil 247

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