Foi uma confluência de incidentes. No mesmo dia em que descobriu que terá de pagar hora extra para a empregada e o guaraná no voo da GOL, acabou o estoque de lexotan na casa do Almeidinha. Se fosse na semana anterior, seria uma quádrupla tragédia, a contar o litro de leite de soja com detergente ingerido após o treino de spinning.
Não está sendo fácil.
Almeidinha já faz as contas do quanto terá de economizar para dormir tranquilo, com a cueca limpa e sem passar vontade nas duas horas e pouco da viagem até Porto Seguro com a família que pagou a prestação.
Pensa em levar amendoim e garrafinha Dolly enrustida no casaco para evitar um escarcéu do filho mais novo. Se começar a espernear, berrar, babar, fingir desmaio, o menino é capaz de convencer os comissários de bordo a distribuir gratuitamente até PlayStation no avião.
Diante dos reveses às vésperas das férias familiares, Almeidinha já se decidiu: a empregada, que faz as vezes de babá nessas viagens, terá de se virar se o estômago roncar durante o percurso. Se pedir amendoim, a resposta virá no padrão GOL: que saque o FGTS e compre.
Isso se a menina vingar até lá. Para não se responsabilizar pela doméstica e a creche dos filhos da doméstica – são só dois, o suficiente para Almeidinha imaginar que ela procria feito coelho – a estratégia é desfazer o vínculo aos poucos. A moça deixa de trabalhar e dormir na casa da família Almeida de segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo e passa a vir apenas dois dias na semana. Nos outros, os homens da casa terão de ajudar – teriam, porque o Almeidinha já pensa num jeito para derrubar sem querer três em cada quatro pratos lavados para convencer a esposa, ela sim prendada, de que não tem talento para a coisa.
O saldo de pratos estraçalhados é a imagem da punhalada provocada pela PEC das Domésticas – que no solar dos Almeidas ganhou o nome de PEC da Ingratidão. Afinal, eles encontraram a menina famélica, deram abrigo, comida e roupa a ser lavada. E agora ela vem falar em hora extra? Para isso o Almeidinha tem um lema: “A gente ajuda os empregados. Os empregados é que não se ajudam”.
Como previu o professor José Pastore, da USP, as mudanças já provocam irritação entre a esposa, que Almeidinha chama de patroa, e a doméstica, que ele não sabe o nome. A revolta da patroa, que precisa das domésticas para desenvolver suas atividades profissionais, tem como alvo os parlamentares e a presidenta Dilma, que, segundo o professor, pode ganhar alguns votos das domésticas mas, se depender dela e das vizinhas, não se elege nunca mais – se dependesse delas a presidenta não teria sido eleita logo em 2010, mas esta é outra história.
Para elas, é o fim da picada: pagar tantos impostos e não ter direito a uma secretária 24 horas. Culpa de quem? Do Bolsa Família, das cotas nas universidades, do Prouni, das distribuições gratuitas de camisinha no Carnaval, do sistema prisional que cuida de bandidos em vez de fuzilar. Noves fora, o Almeidinha se questiona: estudar, sem bolsa, pra quê? Pra pagar impostos e financiar a corja toda? Melhor largar os estudos, viver de programa social, praticar pequenos delitos e garantir vida boa na cadeia. Nesta vida de humano direito, conclui, quem trabalha está condenado a pagar a própria bebida no avião. Isso quando a bebida não vem contaminada por detergente. Nunca foi tão difícil viver.
Fonte: Carta Capital