Alô alô, mestiçagem

por Liv Sovik

 

A identificação do Brasil como país mestiço foi, no início do século XX, uma resposta da auto-estima brasileira à ideologia do embranquecimento, uma inovação emancipatória no discurso de identidade nacional. E continua sendo, de certa forma, quando se trata das relações com o eurocentrismo. Em um país mestiço, os brancos são irrelevantes, pois a questão é de misturar-se, deixar-se misturar, reconhecer-se como produto da mistura, o que, paradoxalmente, sempre é possível sem deixar de ser branco. Pois ser branco no Brasil é ter a pele relativamente clara, que funciona como uma espécie de senha visual e silenciosa para entrar em lugares de acesso limitado.

O problema do branco se coloca, hoje, porque a militância cultural e política negra e as estatísticas oficiais informam que o Brasil não é só um país de mestiços, mas de negros-e-pardos, de um lado, e de brancos, de outro. Nesse sentido, cabe aos brancos uma renovada reflexão sobre seu lugar na sociedade brasileira, para preceder uma ação também de brancos contra o racismo. A tarefa de reflexão e ação é a que os Diálogos Contra o Racismo entre brancos e negros vêm encarando. Pois é necessário encontrar não só formas concretas de combater o racismo juntos, mas de tirar o peso do argumento que, em um país mestiço, está tudo (relativamente) bem.

Os brancos tendemos a considerar que as “queixas” de quem está do lado de fora são chatas, feitas por quem não sabe entrar nos circuitos do poder. Agrega-se a isso o fato de que é mais fácil para os brancos a convivência passiva com hierarquias sociais racistas, muitas vezes abençoadas pelo discurso de todos serem mestiços, do que relembrar a escravidão e sua vinculação à injustiça presente, um dos principais estímulos éticos à mudança. E, ainda, os brancos resistimos a acatar a liderança negra, a ficar na sombra em um grupo racial misto e entender que não detemos o principal poder de mobilização política nesse tema.

Algumas dessas resistências brancas estão sendo enfrentadas. O resultado desse processo de enfrentamento – por rappers, funkeiros, organizações e lideranças negras e pessoas negras na vida cotidiana – já se faz sentir, com a crescente percepção da questão racial brasileira pela classe média branca. Mas é preciso elaborar um discurso não só sobre ajustes necessários, mas sobre novas possibilidades para enfrentar a versão conservadora da mestiçagem.

Para mudar o quadro de aceitação da rotina racista, é preciso inventar uma nova versão do Brasil. Por ser estrangeira e imigrante ao Brasil, me preocupa particularmente a necessidade de reinterpretar a mestiçagem nas relações do Brasil com o exterior, embora, em geral, ela continue a fazer sucesso como indicação da maneira diferente em que as relações raciais se encaram no Brasil. É preciso mudar porque há um retorno do racismo reprimido na percepção estrangeira do Brasil como lugar onde as pessoas “são mais pobres, mas se divertem mais do que a gente”. (O paternalismo acrescenta, “são até invejáveis”.)

O Brasil é um lugar de sofrimento e gozo, como o Macaco Simão nos lembra; de “uma convivência extraordinária entre a alegria e o caráter trágico da vida”, como disse o filósofo francês Clément Rosset. Mais concretamente, lembremos das visitas turísticas a favelas, os shows de mulatas agora orientados especialmente para estrangeiros, o turismo sexual. A imagem do Brasil no exterior tem gênero e cor, é uma mestiça.

Nesse sentido, é importante retomar a história da mestiçagem, pois ela é patrimônio nacional e continental. A revalorização da mestiçagem não data só das primeiras décadas do século XX. No Brasil Colônia se valorizava mestiços porque eram considerados melhor adaptados ao trabalho nos trópicos e por ter meio-caminho andado entre o mal do negro e o bem do branco.

Impossível pensar o Brasil sem essa história; impossível pensá-lo sem a mestiçagem, historicamente engendrada pela violência e a dominação, assim como pela resposta que os dominados deram. Um exemplo de como a mestiçagem não significa fusão se encontra na máscara católica sincrética do candomblé. Essa máscara nunca aderiu completamente. Hoje, depois que a repressão ao candomblé passou, entende-se que Santa Bárbara representa Iansã, mas Iansã não é Santa Bárbara: as relações são assimétricas e dificilmente o discurso identitário negro atual será reencapsulado pelo da mestiçagem.

É preciso repensar a mestiçagem sem tentar ordenar uma cena cultural tão complexa quanto a brasileira, repensá-la precisamente para recolocar em pauta mundial a sua exuberante criatividade moderna e pós-moderna, sua potência sutil e pujança múltipla.

Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ

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