A resistência negra cristalizou-se como a grande ameaça a rondar o sono das elites brasileiras.
Das imagens aguerridas de Palmares aos retratos distorcidos das periferias urbanas, os vultos de corpos negros impondo-se frente ao racismo deflagram o terror de Estado como resposta patente. Nessa agenda de postura genocida, o grande apetite pela carne negra é saciado de maneira mais visível na movimentação dos aparatos policiais.
Mas não percamos tempo com esse tipo de denúncia saturada. Afinal, a construção da imagem da polícia racista, como o grande alvo de críticas de uma sociedade de bem, serve há muito para a manutenção desse campo minado cavado em torno da juventude negra desse país.
A narrativa usual é apaziguadora de consciências: uma pequena parcela de policiais, “as maçãs podres das corporações”, são os algozes dos extermínios noticiados.
Na imagem da TV, o capitão promete proceder uma investigação severa. Nos jornais, organizações de direitos humanos se posicionam contra esse tipo de prática. No sossego dos lares blindados, experimenta-se o alívio pela extirpação de mais um suspeito na guerra que se renova e intensifica.
Nessa equação, o racismo quer se apresentar como problema episódico, incidental, sendo negado seu papel estruturante das relações sociais no Brasil. A responsabilidade pela produção em série de mortes daqueles que, no dizer de Frank Wilderson, parecem ter a “capacidade de magnetizar balas”, passa a ser de policiais desrespeitosos de uma cultura institucional legítima.
Como se as polícias pudessem prescindir de sua postura homicida para cumprir a agenda política das elites. Como se as corporações policiais não tivessem a função do extermínio, levada a cabo por agrupamentos eleitos para tal fim, como uma de suas missões institucionais. Como se grande parcela da sociedade não sustentasse essa cultura policialesca da morte e da tortura justificando-a sempre como necessidade, nunca como escolha.
Em regra, poucas alternativas são apresentadas a esse quadro que parece querer se cristalizar como inevitável. Na contramão dessa tendência, o projeto de lei nº 4.471/2012 abre um pequeno, mas significativo espaço para novas perspectivas.
A proposta versa sobre a instauração de inquérito nos casos em que o emprego de força policial resultar em morte ou lesão corporal. Na prática, busca-se coibir as ações de extermínio e execução sumária sistematicamente classificadas como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”.
Na conjuntura atual, em que as forças políticas se reorientam frente a onda de mobilizações e protestos, talvez seja essa uma oportunidade ímpar de se verificar compromissos. Afinal, que lugar ocupa o extermínio sistemático da juventude negra brasileira nas plataformas que pleiteiam a moralização do poder público? Qual a resposta efetiva de um Congresso Nacional à busca de legitimação frente a esse quadro insustentável?
Perguntas com respostas em aberto que já sinalizam a adoção do tom conservador historicamente assumido. Na Câmara dos Deputados, o projeto não foi posto na pauta de votação na última semana, já que a matéria “ficou prejudicada por outras prioridades”, nas palavras do presidente da Casa, deputado Henrique Eduardo Alves, do PMDB-RN.
Enquanto o poder dá sentido às suas prioridades, a resistência negra segue apontando para urgências flagrantes, sendo a preservação da vida uma de suas principais agendas. Diante dessa situação-limite, busca-se fazer com que as pilhas de corpos que se amontoam sejam dignas de algum tipo de justificativa e censura. Pretende-se, em última instância, quebrar a tendência histórica que sustenta o assalto à vida negra como norma que não precisa ser fundamentada.
ANA LUIZA FLAUZINA, 33, é doutora em direito e pesquisadora associada do Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos)
Fonte: Folha de São Paulo