Aquele negro que é gente

Ainda tem quem acredite que a humanidade é um privilégio branco

Semana passada, alguém me fez a seguinte pergunta: Sabe aquele negro que é gente?

Atônita, respondi: Sei, sim. O que não sei é como é aquele negro que não é gente.

Um silêncio constrangedor tomou conta do ambiente e colocou um ponto final no discurso da interlocutora contra a adoção de cotas raciais e outras ações afirmativas para fazer frente às desigualdades vigentes na sociedade brasileira.

Movimentos negros fazem protesto em frente a embaixada da Espanha contra o racismo sofrido por Vini Jr. em jogo da La Liga, na Espanha – Bruno Santos – 23.mai.23/Folhapress

Foi duro de ouvir que somente alguns de nós, negros, somos vistos como gente por pessoas de bem que convivem conosco no ano 2024.

Mas também foi importante. Acredito que a luta dos movimentos sociais negros seria facilitada se todos se expressassem de forma explícita sobre a questão racial. Mas raramente se fica frente a frente com uma pessoa que escancara seu pensamento racista.

O olhar para o negro como um ser “não-humano” —ou seja, um animal, selvagem— sustenta práticas discriminatórias perpetradas inclusive pelo Estado. Corpos pretos e pardos estão no alvo da mira policial, do encarceramento, do desemprego, do analfabetismo, da escravização doméstica, da pobreza em geral. Não é por acaso que a capital mais negra do Brasil, Salvador, lidera o ranking de homicídios de jovens de 15 a 29 anos (Instituto Cidades Sustentáveis).

Lembrei da entrevista publicada pela Folha com o professor de estudos afro-americanos Frank B. Wilderson 3º, da Universidade da Califórnia em Irvine, em 2021. Autor do livro “Afropessimismo”, ele sugeriu que a escravidão é uma dinâmica racial que não acabou. Disse: “(…) no inconsciente o corpo negro não é considerado um ser humano, mas um recurso para as pessoas. (….) não acredito que o negro possa entrar num cômodo como um sujeito humano, mas não significa que sempre entre como algo temido. Pode entrar como algo amado pela exuberância da sua negritude, pela sua música, ou pela forma como fala.”

Quem se dedica a estudar a complexidade do racismo no país sabe que é preciso se reconhecer como racista para que ações de promoção da equidade racial prosperem e produzam resultados efetivos. Afinal de contas, ainda tem gente que acredita que a humanidade é um privilégio branco.


Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

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