Aquele velho conhecido, o racismo

Apesar de o aumento do número de brasileiros que se autodeclaram negros, o racismo ainda é uma ferida aberta.

Jorge Melo no Redes da Maré

Foto: Elisângela Leite

O que faz duas mulheres, entre 60 e 70 anos, discriminarem duas jovens negras, em regiões diferentes da cidade? Responder não é fácil. No Brasil, ninguém se assume racista. Quando se discute o racismo, tem sempre aquele que diz que isso é um absurdo, que é história de quem quer dividir o País, que todos são iguais perante a lei, que a reclamação é mimimi. Olhando em volta, para a desigualdade imoral que nos afronta, é possível entender por que isso acontece. Apesar de inegáveis avanços, leis inclusivas e uma gradual mudança no comportamento do brasileiro (entre 2012 e 2016, o número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou 14,9%), o racismo ainda é uma ferida aberta.

O suspeito de sempre

Em março deste ano, Thais de Jesus Custódio, saía, com uma amiga, de um baile, na Penha. Era uma manhã de domingo. Aos 28 anos, a economista, formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vive e se diverte, preferencialmente, no subúrbio. Não quer distanciar-se das suas raízes, fincadas na Maré. Thais faz parte de um grupo restrito. Segundo dados do IBGE apenas 10,4 % das mulheres negras completam o Ensino Superior. O percentual de mulheres brancas com Ensino Superior completo é de 23,5%.

Thaís e a amiga resolveram comer numa lanchonete, na estação de trens. Se interessou por um pastel, exposto na vitrine, mas ficou em dúvida se estava quente e dirigiu-se a uma senhora, que comia um igual. Qual não foi a surpresa de Thais quando a mulher, que aparentava uns 60 anos, começou a gritar, acusando-a de tentar roubá-la. Um homem mais jovem, que se apresentou como filho dela disse: “o problema não é com você, ela é racista”. Mesmo assim ele apoiou a mãe na falsa denúncia.

A omissão policial

As poucas pessoas que estavam na lanchonete, aos olhos de uma Thaís confusa e humilhada, pareciam concordar com as acusações descabidas. Teve medo de até ser linchada. Indignada, Thais lembrou-se que existia uma cabine da PM, na rua em frente, a uns 300 metros da estação. Chorando, caminhou rapidamente. Na cabine, o policial militar dormia. E ainda sonolento disse que nada podia fazer, porque Thaís não tinha nem o nome nem o endereço da agressora. Thaís protestou, mas o policial manteve a mesma postura distante e desinteressada. Revoltada, Thaís foi para casa aos prantos, se sentindo impotente. Depois de conversar com algumas amigas, decidiu fazer um Boletim de Ocorrência. E foi à Delegacia da Penha.

A puxada de orelha

No ano passado, o Brasil foi advertido no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, no sentido de intensificar o combate à discriminação contra a população negra. E não se trata de proteção a uma minoria. De acordo com a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, do IBGE, 104,2 milhões de brasileiros são pretos e pardos – o que corresponde a mais da metade da população do País, estimada em 205 milhões.  O Conselho pediu providências ao Governo brasileiro para a redução dos homicídios de jovens negros, intolerância religiosa, garantia de acesso à educação de qualidade, proteção e garantias de direitos para mulheres negras e mais acesso a políticas de redução da pobreza e a programas sociais.

Preconceito fora de controle

Pâmela Cristina de Carvalho tem 25 anos. Formada em História pela – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz mestrado em Educação, também na UFRJ. Pertence a um grupo ainda mais restrito do que Thaís. O mestrado é o início da carreira acadêmica, que se completa com o doutorado. No Brasil, existem 219 doutoras pretas e professoras em cursos de pós-graduação, segundo o Censo da Educação Superior de 2016. Ou seja, apenas 0,4% do corpo docente na pós-graduação em todo o País. Já o corpo discente (estudantes) da pós-graduação concentra um visível baixo número de alunas pretas. Mas ninguém sabe quantas são. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, as informações sobre raça foram instituídas em 2016, e 2017 foi o primeiro ano em que os estudantes tiveram de preencher o campo “raça” nos formulários. Os dados estão em fase de consolidação e ainda não foram divulgados.

O “jeitão” esquisito

Pâmela conta que seguia para uma aula no Campus da Praia Vermelha, quando foi abordada por uma mulher aparentando entre 60 e 70 anos, que demonstrando indignação disse, com ofensas, que ela e seu cabelo a incomodavam. Pâmela reagiu, denunciando o racismo. E foi em busca de ajuda. Encontrou um PM, e com ele localizou a injuriante na entrada do Shopping Rio Sul. O PM alertou a mulher sobre a gravidade do gesto e a pressionou a pedir desculpas. Tentando se defender e dar um ar de naturalidade às ofensas, disse: “mas essas meninas ficam usando esses cabelos pro alto, assusta as pessoas.” Pâmela é irônica ao referir-se ao incidente: “as senhorinhas de Botafogo-Urca estão passando mal com o meu ‘cabelo estranho’, com esse ‘negócio pro alto’, com esse ‘jeitão esquisito’. Os senhores-garotões do Rio Sul estão espumando de ódio com a presença de uma mulher que não corresponde ao estereótipo de feminilidade”.

Depois da intervenção conciliatória do policial e muita resistência, a mulher, de má vontade, concordou em pedir desculpas.  Mas Pâmela não ficou satisfeita e resolveu registrar a ocorrência na Delegacia de Botafogo.

Tratamentos diferentes

Na Delegacia da Penha, Thaís se incomodou com o tom de algumas perguntas e comentários do inspetor, encarregado de tomar o depoimento. Segundo Thaís, ele fez vários questionamentos em relação ao comportamento dela e ao local em que estava, antes do ocorrido: um baile funk. Também fez observações sobre as roupas que usava e chegou a dizer que muitas pessoas de classe média eram cleptomaníacas, ou seja, roubam mesmo sem necessidade.

Já Pâmela considerou correto o atendimento na Delegacia de Botafogo. Segundo ela, foi ouvida com atenção e informada de que o PM, que fez o primeiro atendimento, deveria ter tomado as medidas para dar início à responsabilização da mulher por injúria racial e, não, propor um pedido de desculpas. A polícia está agora tentando localizar as injuriantes.

Thais e Pâmela terão de ter muita persistência para que as denúncias sigam em frente. Desde 1988, apenas 244 processos de racismo e injúria racial foram julgados no Estado do Rio de Janeiro. Uma média de oito por ano.  E entre os casos julgados, quase 40% foram considerados improcedentes pela Justiça na área cível. Na área criminal, os réus foram absolvidos em 24% dos casos. Essa situação se repete em outros Estados do País.

A injúria racial é apenas um dos tipos de agressão que sofrem mulheres negras como Thais e Pâmela. Segundo dados do IBGE, as mulheres negras estão na base da pirâmide salarial. Elas ganham, em média, 40% menos que um homem branco na mesma função. Mulheres negras são as principais vítimas da violência no Brasil. Segundo o Mapa da Violência, realizado anualmente pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, enquanto a mortalidade de não negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice cresceu 22%.

Racismo é crime

A legislação brasileira determina a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há quase 30 anos foi criada a Lei 7.716, que tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo, também presente na Constituição de 1988.

Segundo o antropólogo Kabengele Mungana, que nasceu no Congo, na África, e é um estudioso da questão racial no Brasil, “ecoa dentro de muitos brasileiros uma voz muito forte que grita: ‘não somos racistas, os racistas são os outros’. Essa voz forte e poderosa é o que eu chamo de inércia do mito de democracia racial brasileira. Como todos os mitos, ela funciona como uma crença, uma verdadeira realidade, uma ordem. Por isso, é difícil arrancar do brasileiro a confissão de que ele também é racista”. Mungana é um dos 120 professores negros da Universidade de São Paulo (USP), que tem um quadro de 6 mil docentes.

No Rio de Janeiro as denúncias de racismo podem ser encaminhadas pelo telefone: (21)3399-1300.

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