As “arautas da branquitude” e o racismo nosso de cada dia – por Rosiane Rodrigues

 

Não sei se o leitor percebeu, mas é o segundo ano consecutivo em que uma repórter vira notícia sendo acusada de preconceito. Em 2012, a jornalista Mirella Cunha, na época repórter da TV Bandeirantes, virou notícia em todo país após entrevistar, em tom de chacota, um rapaz de 18 anos acusado de estupro. O “acusado” (e mais tarde ficou provado que ele não era o estuprador) era negro e a jornalista o constrangeu reiteradas vezes por ele não saber diferenciar um exame de corpo de delito de um de próstata. Alguns meses depois, o Ministério Público Federal da Bahia abriu procedimento e a está processando (junto com a emissora, espero!) por uma lista de crimes que vão do abuso de autoridade até ofensa ao direito da personalidade.

Agora, a bola da vez é a jornalista Micheline Borges (do Rio Grande do Norte), que causou frisson nas redes sociais ao declarar, em um post no Facebook, que as médicas cubanas têm cara de “empregadas domésticas”. Sua primeira reação, ao perceber que o seu furo não era o “de reportagem”, foi desativar seu perfil na rede. O leitor deve estar se perguntando: o que as duas repórteres têm em comum, além de serem louras? Aparentemente, nada. Mas, penso que elas podem ser classificadas como “arautas da branquitude” e, quem sabe, não estão prestando um grande serviço a todos nós?

Sim, caros, um serviço. Esses fatos, mesmo não sendo novidade – porque acontecem todos os dias –, quando repercutidos pela imprensa trazem a possibilidade de refletirmos publicamente sobre algumas facetas da sociedade que para muitos parece etérea, disforme… uma coisa sem sentido que muita gente acredita que foi inventada pelos negros. Pois é. Pode apostar que, contrariando os que acendem velas e incensam a democracia racial brasileira e afirmam, em alto e bom som, que não somos racistas, este artigo vai falar exatamente sobre o racismo nosso de cada dia, de novo! O mesmo que privilegia o padrão europeu de beleza para contratar jornalistas, de norte a sul do país.

Médico preto?

Todo mundo ficou hor-ro-ri-za-do com o preconceito de Micheline contra as médicas da terra do Fidel. Ooooohhh! Assim como leitores, internautas e telespectadores – e até os editores e diretores de redação! – ficaram no acontecimento anterior. Em coro, disseram que são declarações e atitudes preconceituosas contra os negros – fossem cubanos ou aqueles que têm o estereótipo da delinquência… Porém, a discussão que proponho é a de pensar sobre de que exatamente tratam esses eventos. Outro dado interessante é que não vi nenhum órgão da grande imprensa assumir, efetivamente, que esses acontecimentos revelam práticas explícitas de discriminação racial. Peço a você, que lê este texto que, por favor, me envie os editorais da Folha, do Estadão, do Globo ou matéria da Bandeirantes – no caso da Mirella – sobre os eventos. Eu não os achei.

Porém, é preciso me concentrar no caso “Micheline’. Vamos ao post do dia 27/08, última segunda-feira. Ele começa assim: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica”. Como assim, “me perdoem se for preconceito”? Sim, querida, realmente é preconceito. Mas não temos o que perdoar. Por que você conseguiu extrapolar o preconceito e partir para outro campo, que é o da discriminação. As pessoas fazem muita confusão entre preconceito e discriminação. Preconceito todo mundo tem e arrisco a dizer que é um sentimento inato ao ser humano. Nós temos preconceito contra tudo que é diferente… e isso não é nada demais, desde que você não faça do seu preconceito uma prática discriminatória. Aliás, entendo que assumir que se é preconceituoso é meio caminho andado para não ter preconceito. Já discriminação é quando você utiliza os seus preconceitos para julgar e/ou hierarquizar pessoas e situações. Ter preconceito não é crime, mas discriminar é. No caso, a jornalista (protótipo da “branquitude”, tão procurado pela imprensa de um modo geral) pretende desqualificar – que é umas das mais conhecidas práticas do ato de discriminar – as profissionais da Saúde, por achar que elas parecem empregadas domésticas.

O problema é que para Micheline, médicos/as precisam ter “boa aparência”. Será que eles precisam escrever as receitas com letra incompreensível e vestir jaleco com o nome bordado a mão? Ela continua o post: “Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência… Coitada da nossa população.” Mas, o que essa moça quis, de fato, dizer? Que tipo de boa aparência ela se refere? Para quem não viu as fotos, a maioria dos médicos cubanos que chegaram ao país, é de negros. Parece que para Micheline ter a pele preta significa incapacidade de cursar uma faculdade de Medicina e ser um bom profissional. É como se, para ser empregada doméstica, servem as pretas, mas médica? Sua escrita deixa explícita a sua consciência: aos negros no Brasil, apenas os serviços subalternos, herança quase pétrea dos mais de 350 anos de escravidão. Médico preto? Deus me livre! – já dizia o deputado Jair Bolsonaro (em entrevista sobre as cotas, em 2011), que afirmava que não gostaria de ser atendido por um médico cotista, fosse preto ou indígena.

A “surpresa” de Micheline

E a mais nova “arauta da branquitude”, finaliza: “Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.” Nesse ponto confesso que fiquei confusa: Deus proteja o nosso povo de quem? Da febre amarela, da dengue ou das médicas pretas que parecem empregadas domésticas? Nossa! A questão é que, creio, não estamos diante de uma ativista da Klux-Klux-Klan – ela nem deve saber o que é isso! O triste é que Michelines e Mirellas são, antes de jornalistas, pessoas comuns que por estarem visualmente dentro dos padrões da branquitude – determinados invariavelmente pela grande mídia – acessam redes de comunicação, potencializando opiniões e atitudes que expressam toda a carga discriminatória, alimentada por séculos de fortalecimento dos estereótipos relativos aos negros – e todos aqueles que são considerados diferentes peloestablishment.

Não tenho muitas dúvidas de que a opinião da Micheline e a atitude de Mirella representam o sentimento de pessoas que, assim como elas, fazem questão de se autoafirmarem como “sem preconceito” mas não hesitam em discriminar e achincalhar outros seres humanos pela aparência ou função que ocupam na sociedade. Mais que repensar a formação de jornalistas e da atuação dos veículos de comunicação, acredito que é preciso refletir sobre esta sociedade que, não só produz pensamentos e pessoas deste nível, mas que ainda permite que temas tão complexos e delicados como racismo, discriminação, preconceito e xenofobia não sejam tratados diuturnamente por esses mesmos veículos.

Aprendi muito cedo que não há trabalho pior ou melhor, desde que ele seja digno, e que todas as funções que ocupamos na vida têm um mérito e um crédito. Ser médico, faxineira, engraxate ou cientista não depende apenas da capacidade intelectual, mas das oportunidades que se tem (ou não) ao longo da vida, e que essas oportunidades são proporcionadas (ou não) no seio das sociedades. É por este motivo que penso que o real motivo da “surpresa” de Micheline, ao ver os médicos cubanos chegando ao aeroporto é muito próxima da “certeza” que teve Mirella – quando destratou um acusado, na TV: as duas sabem que no Brasil, o lugar das mulheres negras é o de empregadas domésticas, assim como o dos homens é o de marginais… Espero, sinceramente, que os médicos cubanos (argentinos, uruguaios, alemãs, vietnamitas ou marcianos) saibam menos sobre dengue, febre amarela, diarreia e desnutrição, e mais sobre ética, respeito às diferenças, sensibilidade social e boa vontade para com os nossos doentes.

***

Rosiane Rodrigues é jornalista e pós-graduada em Educação para as Relações Étnico-raciais

 

 

 

Fonte: Observatório da Imprensa

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