“A Constituinte de gênero tem impulsionado uma campanha de eventos para que cada organização ou pessoa possa fazer no seu território ou na sua comunidade um ciclo de diálogo aberto para falar sobre clima, gênero e feminismo. Então, ao longo do dia, vão estar sendo realizadas mais de 80 atividades em todo o mundo, em diversos países. E nós aqui em Geledés, juntamente com o GT N de Gênero e Justiça Climática do Observatório do Clima, nos juntamos a este grande movimento, a essa grande campanha da Constituinte de Gênero”. Foi com essa afirmação que Ester Sena, assessora de Juventude de Geledés – Instituto da Mulher Negra, abriu o evento “Gênero, Cuidado e Resistência”, realizado em 17 de setembro, em São Paulo, no formato híbrido, presencial e online.
Segundo Sena, o encontro foi pensado como parte de uma preparação para a COP30, que acontecerá em Belém (PA). O painel alinhavou experiências diversas, conectando a Marcha das Mulheres Negras 2025, cujo temática central é a Reparação e o Bem-Viver, à luta das defensoras ambientais e suas agendas nacionais e internacionais de justiça climática.
A mesa contou com Juliana Gonçalves dos Santos, jornalista e integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo; Luciana Sousa de Oliveira, professora e militante da Rede Vozes Negras pelo Clima, com atuação em Linhares (ES) e presença nas COP-28 e 29; Maria Malcher, liderança do CEDENPA-Pará e do Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras; Tatiana Queiroz, geóloga e especialista em gestão ambiental, integrante da Rede Jandyras em Belém e facilitadora do GT Gênero e Justiça Climática do Observatório do Clima; e Thaynah Gutierrez Gomes, administradora pública formada pela FGV, mestranda em Administração Pública e secretária executiva da Rede por Adaptação Antirracista.
“Agradeço à Ester por ter topado criar esse evento para que conseguíssemos colocar no radar uma ação nesse movimento global puxado pela Constituinte de Gênero, que faz parte da UNFCCC”, disse Tatiana Queiroz ao abrir o debate referindo-se à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, tratado internacional que entre seus principais objetivos está estabilizar a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.

foto – Isabela Gaidis
Vinda de Belém, sede da COP30, Tatiana integra a Rede Jandyras, um coletivo formado por articuladoras ambientais de mulheres periféricas, em sua maioria não brancas. No encontro, Tatiana reforçou que a mobilização não deveria se encerrar no evento de Belém. “Essa articulação não pode acabar na COP30. Pensamos também com muito carinho em trazer a Marcha das Mulheres Negras, que terá sua realização no pós-COP, e em incluir no debate a pauta de defensoras climáticas.” Ela destacou ainda o valor das soluções comunitárias existentes. “Os territórios indígenas, quilombolas, de ribeirinhos e os maretórios não são apenas zonas de sacrifício, mas são zonas de solução.”
Sobre o trabalho do GT de Gênero e Justiça Climática, Tatiana ressaltou que as contribuições brasileiras incluem a defesa da justiça reprodutiva, dos direitos sexuais, da divisão justa do trabalho de cuidado e do financiamento climático com a perspectiva de gênero. “Quando falamos em mais recursos para o fundo de perdas e danos, nos dizem que é difícil conseguir. Mas é justamente por isso que vamos continuar falando.” Ela defende também uma maior valorização dos saberes das comunidades. “Nesses espaços das conferências do clima, o conhecimento científico branco e hegemônico não leva em consideração as soluções que nós já temos. Falta comunicação, transparência e produção de dados que considerem cultura, raça, idade e gênero.”
Já Juliana Gonçalves reforçou o impulsionamento da mobilização das integrantes da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. “Fomos para Brasília com muitas histórias, muitos desafios, mas muito convictas desse projeto político de transformação”, afirmou.
Neste contexto, segundo ela, sua dissertação “Bem-viver em Narrativas de Mulheres Negras”, concluída em 2022, ajudou-a a sistematizar saberes e práticas fora da academia. “É muito vívido ver o quanto as mulheres negras constroem política e ações com base nesse bem-viver que não nasceu nos livros, nem na academia, mas sim nessa vida mesmo dos terreiros, dos quilombos, das periferias urbanas.”
Em sua fala, Juliana defendeu a relevância da Carta de 2015 da Marcha das Mulheres Negras, que inclui propostas ligadas à pauta climática. “Há um determinado momento na Carta de 2015 sobre a importância da garantia das terras quilombolas, indígenas e dos povos tradicionais, sobre a permanência da juventude negra no campo, sobre agroecologia e preservação de sementes nativas, sobre justiça ambiental e a defesa de bens comuns e a não mercantilização da vida.” De acordo com ela, uma década depois, os desafios se agravaram. “Tivemos um golpe, uma crise sanitária com a Covid-19 e também uma crise política, ética e ambiental, que fizeram aumentar a fome, a desigualdade, a vulnerabilidade dos corpos negros. Precisamos exaltar sempre como o racismo ambiental não é um acidente, mas parte de uma engrenagem de um sistema.”
Para Juliana, a justiça climática só faz sentido se caminhar junto à justiça racial e de gênero. “Se o capitalismo nos trouxe a esse abismo climático, eu vejo no bem-viver essa oportunidade de oferecer uma ponte para esse futuro. É tempo de ouvir mulheres negras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas, que há séculos estão praticando uma forma mais equilibrada de ser e estar no mundo.”
Ela defende que o protagonismo negro seja real na COP30. “A gente está cansada de ser o colorido que vai dar diversidade. Há um projeto político construído por mulheres negras, por organizações sérias, que precisam ter espaço de voz e atuação na COP. É urgente garantir o financiamento das iniciativas negras, quilombolas e ribeirinhas de transição energética, reconhecer as perdas climáticas sofridas nos territórios negros e incluir a economia do cuidado e a bioeconomia comunitária no centro do debate.”
Ao lado de mulheres quilombolas, ribeirinhas, periféricas e defensoras ambientais, Luciana Souza de Oliveira reforçou que a luta contra a desigualdade é indissociável da luta climática. “Falamos aqui também de um racismo ambiental, mas também da interseccionalidade, que compreende raça, gênero, território, classe, e vão se cruzando e agravando as desigualdades. Não é coincidência que, segundo a ONU, 80% das pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas no mundo são mulheres.”
Luciana destacou que essas vozes precisam estar no centro das negociações internacionais. “Nós vivemos na prática a interseção entre o racismo estrutural, as desigualdades de gênero, a injustiça ambiental. Estar nessa luta nos oferece caminho para construir uma justiça climática com justiça social rumo à COP 30. Esse racismo tem rosto, ele tem cor, ele tem território, e às vezes até tem idade também.”
Em sua fala, Thaynah trouxe sua experiência de outras organizações para sua atuação nas negociações climáticas globais como representante de Geledés. “É muito importante dizer sobre os desafios que temos para conseguir inserir nas discussões de gênero dentro de conferências climáticas como a COP essa perspectiva de gênero interseccional. Ela trabalha a perspectiva de raça, mas também leva em consideração pessoas com deficiência, especificidades territoriais e todas essas interseccionalidades que nos fazem mulheres diversas e nos colocam em lugares de mais ou menos vulnerabilidade diante dos impactos socioambientais.”
Thaynah ressaltou também o papel das comunidades de terreiro. “Desde a Eco 92 temos uma presença massiva das lideranças de terreiro, em especial das sacerdotisas, como Mãe Beata de Iemanjá. Mas hoje, quando olhamos para quem fala nos espaços de representação socioambiental, as mulheres de terreiro não estão contempladas. É importante dizer que o histórico de luta do movimento negro conectado com a luta socioambiental não vem de hoje.”
Com a realização da COP30 no Brasil, Thaynah vê uma oportunidade única de avanço. “Seguimos juntas nessa luta para que, neste ano de COP30, consigamos aprovar um Plano de Ação de Gênero e abrir cada vez mais espaço para que essas múltiplas vozes possam desenhar também as políticas nacionais de clima no Brasil.”
O evento “Gênero, Cuidado e Resistência” evidenciou a articulação entre lideranças de mulheres negras em torno das temáticas sobre memória histórica, justiça climática, interseccionalidade de gênero e raça, e protagonismo negro, consolidando a importância de incluir mulheres negras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e periféricas no centro das decisões globais sobre clima e políticas ambientais. Desta forma, entendeu-se que a COP30 surge como uma janela estratégica para amplificar essas vozes, como enfatizaram as painelistas, de maneira que adentrem as agendas nacionais e locais, reforçando resistência, cuidado e bem-viver como fundamentos para políticas socioambientais justas e sustentáveis.