Não é raro me deparar com meninas que, para fugir da agressividade dos assédios, simula imperfeições faciais que não existem. Se tornam “feias” para que cessem instantaneamente os olhares. E eu as entendo. Não é nada agradável sair às ruas e ouvir, o tempo todo, comentários masculinos sobre a aparência.
Contudo, é essa a saída para evitarmos o assédio? Uma atitude individual?
Nasci em março de 1981. Segundo a tática de se enfear, fui agraciada com uma blindagem aos assédios no mês de setembro de 1982. Explico: sofri um acidente automobilístico que me deixou uma cicatriz no rosto. Uma marca que divide a minha bochecha direita em parte superior e inferior. Uma falha na sobrancelha ocasionada pela pele agressivamente rasgada. E umas bolinhas do guardanapo usado para estancar meu sangue. É. Minha cicatrizarão é boa.
Segunda a técnica, ter um elemento facial fora do padrão, isso me livraria de cantadas de rua. De violência sexual.
Mas, ops. Isso não me salvou do sorveteiro que assediava meninas que procuravam se refrescar com um picolé. Tampouco me livrou da violência sexual aos sete anos. Nem mesmo de que passassem a mão em mim enquanto eu corria pelo acostamento de uma estrada ou circulava por uma boate e etc. Com infinitas reticências.
O que então me fez vítima da cultura do estupro? Ser mulher. Ter gênero feminino numa sociedade patriarcal.
Nem sei contabilizar quantas vezes eu sofri com isso. Como todas as mulheres. De qualquer idade. Qualquer número de roupa, idade, raça ou classe social. Moças portadoras de alguma deficiência ou deformidade não escapam disso. Reitero, ser mulher te torna vulnerável ao assédio.
Minha cicatriz não me protegeu. Pelo contrário. Me curvou, aos 17 anos, à indústria da cirurgia plástica (que amenizou, mas não me livrou da marca). Que não controlou minhas lágrimas ao ler “Capitães da areia” (eu, tal qual o chefe do bando de delinquentes mirins, poderia ser descrita como uma pessoa de “talho na cara”. Uma marca que faz a cicatriz do Scarface parecer rabisco de criança em álbum de família. Que me fez questionar o motivo de muitos vilões do cinema serem como eu, marcados por pontos. Muitos pontos. Mais de cem.
Enquanto a literatura e o cinema usam da cicatriz um elemento narrativo, há na sociedade uma comoção. Algo entre a resiliência e a redenção. De qualquer modo, marcas nos tornam menos neutras na multidão. Contudo, não basta para que os homens entendam que meu corpo é público.
Eu passei por muitas situações desconfortáveis com indagações nada delicadas sobre a origem da cicatriz. Ou os deboches. Ou de ser um ponto de referência (a mulher que tem uma cicatriz no rosto).
Aliás, vejam que engraçado. A minha cicatriz facilitou a objetificação em alguns momentos. Já fui chamada de charmosa por ela. Já ouvi que isso diferencia a minha estética das demais moças. Até já me esquivei de uma mordida na bochecha durante uma troca de beijos. Ela me exotifica.
A cicatriz que me trouxe tanta dor quando vi meu álbum de fotografia da formatura não me protegeu. Não me blindou. Não me humanizou. Só me fez pensar que eu deveria ter aderido, por várias vezes, à balaclava. Já fugi tanto de espelhos…
Agora, conhecendo o feminismo e entendendo que não sou apenas uma massinha a ser modelada dentro de um padrão estético, eu aceito minha cicatriz como uma parte da minha história. Mas, é só isso.
Eu queria que fosse só uma marca de sobrevivência. Eu poderia ter morrido naquele acidente. Eu poderia ter passado por sequelas maiores. Mas, eu preciso ainda me deparar com a exotificação, a vilanização, a objetificação, o questionamento e as indicações de pomadinhas e óleos milagrosos.
Sou uma mulher vítima de assédio. Sou uma mulher com marca facial abjeta que não impede violência masculina Eu, como você, sou mulher.