As relações sexuais não são uma passagem obrigatória, nem uma prova de amor – é esse o credo dos assexuais, que se mostram decididos a afirmar o seu desinteresse pelos prazeres carnais. Eles já formam legiões e afirmam os seus direitos.
Do Brasil247
Eram palavras que não esperava ouvir da boca do meu terapeuta: “Não creio que uma pessoa possa ser assexual”. Eu me assumira como assexual apenas há duas semanas e já assistia à velha reação suscitada por todas as revelações deste tipo: “Isso é impossível”. Normalmente, evito os conflitos, mas desta vez vi-me forçada a passar ao ataque. “Não concordo com você”, respondi.
É fácil subscrever a opinião do meu terapeuta. Filmes, livros e emissões televisivas glorificam o sexo como um fim em si, o principal indicador de que uma relação é séria e de que o amor está presente.
Assexualidade não significa ausência de desejo em ter relações. Não é celibato. Não é uma escolha. É simplesmente ausência de atração sexual
Amor e sexo
Em Como Perder um Homem em 10 Dias (sim, adoro uma boa comédia romântica), as duas personagens principais – uma envolve-se naquela relação para fins de investigação e a outra por causa de uma aposta – fazem sexo logo após terem decidido que os seus sentimentos mútuos eram sérios.
Romeu e Julieta casam-se, em parte para poderem consumar o matrimônio. Até a linguagem nutre uma elevada estima pelo sexo: a frase “fazer amor” significa “fazer sexo”, como se essa fosse a única maneira autêntica de exprimir o amor.
Durante as aulas de saúde e educação sexual no colégio, passamos dois meses a falar de sexo. Estudámos todos os tipos de diagramas sobre partes do corpo que nos eram estranhas, analisamos com meticuloso pormenor a vasta gama de infeções e de doenças que os nossos parceiros nos poderiam transmitir, e discutimos como a abstinência era a única e verdadeira forma de não engravidar.
Nessas aulas, garantiam-nos muitas vezes que era perfeitamente normal não ter relações sexuais. Mas em momento algum nos disseram que era normal não querer tê-las. Éramos uma turma de adolescentes de 16 anos, prestes a descobrir-nos como seres humanos adultos. O nosso professor assumia simplesmente que nós desejávamos sexo. Como poderia ser de outro modo?
Bandeira do novimento dos assexuais, nas cores preta, cinza, branca e lilás
Em conversas com as amigas, fui percebendo os resultados na vida real de todas aquelas aulas passadas a olhar para os desenhos dos sistemas reprodutivos. Uma amiga íntima desses tempos de liceu enviou-me um SMS pela manhã, após ela e o namorado terem ido para a cama pela primeira vez. Contou-me que se sentia estranha e diferente. Outra amiga informou-me sobre o estado da sua relação mais recente: “Ele queria que a sua primeira vez fosse comigo, diz que me ama, somos almas gêmeas”.
Durante o furacão Sandy, éramos cerca de uma dúzia quando nos sentámos num dormitório do baixo Manhattan em que não havia eletricidade e começamos a brincar ao “Verdade ou Consequência”, mas sem consequências. Quase todas as perguntas eram sobre sexo (“Você fez sexo oral no último mês?”), como se não conseguíssemos pensar em mais nada.
Toda essa conversa sobre sexo deixava-me sempre na expectativa de que o meu próprio desejo sexual despertasse. Esperava olhar para alguém num certo dia e pensar: “Ena, esta pessoa é mesmo atraente”. Mas numa entrada do meu diário do ano anterior tinha escrito: “Parece que não me sinto atraída por ninguém e não percebo por quê”. Lembro-me de estar deitada no chão da sala de estar dos meus pais, ouvindo The Smiths e pensando que havia em mim algo de profundamente errado.
As minhas amigas soltavam exclamações de admiração perante fotografias de celebridades masculinas em tronco nu, que apenas me faziam encolher os ombros. Elas sonhavam ter relações com diversos colegas da escola. Eu sonhava apenas com faltas às aulas e apocalipses provocadas por zumbis.
Não me lembro onde vi pela primeira vez a palavra assexual – talvez no Tumblr, imagino. Mas durante o meu segundo ano de faculdade, num curso intitulado “Aproximações aos Estudos do Gênero e da Sexualidade”, lemos um artigo de Anthony F. Bogaert, psicólogo e professor na universidade Brock, em Ontário, que tentava definir a assexualidade e defendia a sua validade enquanto orientação sexual. Foi só após falar com uma amiga que se reconhecia como assexual que compreendi a que ponto aquele termo encontrava eco em mim.
“Não creio que uma história de amor tenha de envolver necessariamente sexo”, dissera-me ela. E isso fez sentido para mim. Sentia vontade de estar romanticamente com certas pessoas, mas essa vontade não envolvia nenhum desejo sexual por elas.
Boné, meias e cachecol para usar no Dia dos Assexuais
0 físico e o sentimental
Até então só tinha experimentado duas relações românticas que considerei sérias. Na primeira, o sexo tinha desempenhado um papel essencial. Conhecia o rapaz desde o liceu, mas só tínhamos começado a namorar no final do verão em que concluímos o curso. Cedi muito facilmente às atenções dele. Era mais gentil e atencioso que a maioria dos rapazes que conhecera e sentia-me impaciente por ter uma relação romântica, na convicção de que isso despertaria a fera sexual que havia em mim.
Para ele, a atração física e a atração sentimental estavam indissociavelmente ligadas. Quanto mais a nossa relação física progredia, mais ele levava a sério aquele envolvimento. Murmurou o seu primeiro “te amo” enquanto nos acariciávamos, semidespidos. Após finalmente termos feito sexo, convidou-me a conhecer a sua família na véspera de Natal.
Na manhã seguinte, enquanto bebia um café, enviei uma mensagem de texto a uma amiga: “Não me sinto diferente”. Dai’ em diante, tornaram-se raras as noites em que ele e eu não fazíamos sexo de alguma maneira. Sempre que regressava de uma visita de fim de semana à universidade em que ele estudava, no Norte do estado, passava o resto do dia enfiada na cama, infeliz com ele e comigo, embora não tivesse palavras para explicar porquê.
Nas principais capitais do mundo já ocorrem manifestações a favor dos direitos dos assexuais
Amor sem sexo
Após o nosso rompimento, comecei a namorar uma moça do Midwest que tinha conhecido através da internet. A nossa relação consistia em conversas diárias no Facebook e em assistir aos mesmos programas de televisão, a longa distância.
Praticamente não falávamos de sexo, a não ser num plano teórico, como algo que acontecia às outras pessoas. A nossa relação resumia-se às palavras nas telas dos computadores, com boa disposição e abertura emocional, e a uns bonitos ícones do Messenger.
Ao fim de três meses e meio, passei dez dias com ela nos arredores de Chicago. Não tivemos qualquer intimidade física além de andarmos de mãos dadas, de nos beijarmos e de dormirmos a siesta juntas. Regressei a minha casa com uma profunda sensação de alívio. Era o tipo de relação que procurava. Não uma relação em que o sexo fosse entendido como necessário, ou como indicador de uma relação saudável, mas o oposto: uma relação em que o sexo não fosse obrigatório. Senti-me mais contente com isso do que julgava ser possível.
Finalmente, a distância que nos separava prevaleceu sobre os nossos sentimentos, e após a nossa separação conheci no site de encontros OkCupid algumas pessoas que se identificavam como assexuais. Passei horas explorando o site da rede Aven (Asexual Visibility and Education Network, Rede de Educação e de Visibilidade Assexual), para comparar a minha experiência com as dos outros. A assexualidade começou a ter para mim um sentido que a sexualidade nunca tivera.
As pessoas a quem explico a assexualidade têm dificuldade em perceber a atração sexual e a atração sentimental como sentimentos distintos. Para muitos dos que sentem esses dois tipos de atração – e de certo para boa parte dos media -, o sexo e o sentimento romântico são indissolúveis, como os xampus “dois em um”.
Mas para quem se identifique como assexual ou arromântico (os que não se apaixonam), assemelham-se, antes, a dois frascos separados, um de xampu e outro de condicionador. Podem funcionar muito bem juntos – às vezes isso é o que acontece – , mas ter-se um deles não implica necessariamente que se tenha o outro.
Essa distinção entre o sexual e o romântico, entre o físico e o emocional, é algo que preciso explicar sempre que me interrogam sobre a minha orientação sexual. A assexualidade, digo-lhes, não é necessariamente ausência de desejo pelas relações. Não é o celibato, e não é uma escolha. É simplesmente uma ausência de atração sexual.
Se compreendermos e acolhermos isso, poderemos nos expor às experiências amorosas mais variadas. Poderemos dizer: “Sim, alguns procuram o sexo, e fazem muito bem, mas eu não sinto esse tipo de atração pelos outros”.
O amor platônico é o preconizado pelos assexuais
Uma nova orientação sexual
Não devemos julgar que esta orientação seja patológica. Oferece àqueles que pretendam viver um amor platônico, não sexual, uma comunidade em que outras pessoas os compreendem e não lhes digam: “É porque você ainda não encontrou a pessoa certa”.
No início do último semestre de estudos, o centro LGBTQ [lésbico, gay, bi, transgênero e queer] da minha faculdade acolheu um novo grupo denominado Aces and Aros, o qual debate as identidades que recaem no espetro dos assexuais e dos arromânticos. Logo na primeira reunião experimentei um forte sentimento de pertença àquele grupo e passei quase todo o tempo a abanar vigorosamente a cabeça, sentindo um estranho fascínio enquanto ouvia os outros participantes partilharem as suas experiências.
Embora me considere mais ou menos pan romântica (atraída sentimentalmente por pessoas de qualquer gênero) e esteja disposta a assumir compromissos com um parceiro em matéria de sexo, essa reunião me convenceu de que, se eu tivesse de conhecer o amor, seria nos meus próprios termos, sem sofrer pressões para me conformar com uma visão predeterminada sobre o que o amor é ou não é.
“Encontrei a minha gente”, disse ao meu terapeuta na semana seguinte. Desta vez, ele respondeu: “Muito bem. Conte-me mais”. E então, recostei-me no sofá e contei.