Atlas da violência – Conte algo que não sei

Os negros, segundo “Atlas da Violência “do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea divulgado no último dia 05, tornam-se, cada vez mais, alvo de ataques homicidas. De 2005 a 2015, 318 mil jovens foram assassinados no Brasil, negros em sua esmagadora maioria. “Futuro perdido”, dizia a chamada de primeira página de “O Globo”, na edição de 06.06.2017, para reportagem de Juliana Castro e Miguel Caballero.

Por Edson Lopes Cardoso Do Brado Negro

A divulgação do Atlas, no entanto, gerou poucos comentários na mídia e está muito longe de representar algum escândalo público. Até a indignação que ouvi de comentarista da rádio BandNews me pareceu construída com palavras meramente rituais:

“Não é possível que você tenha um número como esse, em que mais de 7, em cada 10 vítimas de homicídios, sejam negros e você dizer que é um país onde tem uma democracia racial, isso é brincadeira, é uma ilusão que a gente vive.”

Estou tentando dizer que o comentário não se incorpora à situação. Democracia racial? Quem realmente viveu ou vive essa ilusão entre nós? Ou melhor, quanta hipocrisia e quantos cadáveres são necessários para se conservar uma convicção de fachada? A alegação para abandoná-la somente agora é a de que não se dispunha de informações completas e de cadáveres suficientes. Todo mundo, finalmente, toma conhecimento de tudo.

Colho as frases seguintes da reportagem de “O Globo” (p. 8): “A já conhecida predominância de população jovem e negra entre as vítimas não só se manteve como se acentuou”; e esta outra: “Ser negro no Brasil aumenta a chance de ser assassinado e este é um dado que está se acentuando”.

Se, de cada 100 assassinatos, em 71 a vítima é negra e esta realidade está em franco progresso, com certeza será uma ironia macabra alguém expressar entusiasmo e confiança no futuro do povo negro no Brasil.

Não há também, que eu saiba, após a divulgação da pesquisa, nenhuma compaixão, nenhuma solidariedade diante do sofrimento revelado pelos números. Desnecessário dizer que dentro das regras estabelecidas pelo racismo, trata-se de eliminar vidas que não importam, elementos indesejáveis.

Outro dado interessante dessas pesquisas é que elas não incluem a avaliação de nenhuma política pública. Os textos midiáticos também não registram a avaliação de nenhum fracasso, porque afinal o subentendido é que nunca se tentou a sério fazer mesmo alguma coisa.

Após várias CPI’s, na Câmara e no Senado, de debates com a participação de familiares de vítimas e representantes de movimentos negros, viagens pelos estados, cursos e oficinas buscando o diálogo com o ministério público e outros atores, livros, filmes, cartilhas e campanhas, a sensação diante dos números do “Atlas da Violência” é a de que estivemos todos empenhados em atos fraudulentos.

A consciência de que se comete no Brasil um massacre contra os negros pode ainda abandonar todos os escrúpulos e usar os dados do extermínio como recurso argumentativo para propagar que os negros se odeiam.

Um bom exemplo é o prólogo da coletânea “Bala perdida – a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, no qual Marcelo Freixo afirma que “A tragédia carioca e brasileira é ver homens de preto, quase todos pretos, matando homens pretos”.

Entendo que a tragicidade decorre do fato de os pretos se matarem entre si. Gente doida, muito doida mesmo. O que seria uma estratégia política coerente com essa leitura de nossa realidade? Não aceitar policiais negros? Não permitir que policiais negros, em razão do ódio racial, possam andar armados? Ou manter prudente distância desses rituais africanos macabros?

O certo é que os brancos atilados e espertos conseguem ver as razões mais profundas que determinam o fim da população negra ( “essa gente não se suporta…”), mas nada podem fazer para salvar-nos de nosso fim trágico.

A falta de novidade parece reduzir o impacto do Atlas. “Conte algo que não sei” é o nome de uma coluna de “O Globo” e a expressão pode servir de paradigma para o oportunismo cínico. Mas não podemos aceitar que essas sejam as últimas palavras sobre a continuidade da vida dos descendentes de africanos no Brasil. A recepção silenciosa a essa barbárie diz muito do que somos e só fortalece as condições para que os assassinatos continuem a acontecer.

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