Morénike Giwa Onaiwu ficou chocada quando as creches sinalizaram alguns comportamentos preocupantes em sua filha, Legacy. A criança não estava respondendo ao seu nome. Ela evitava contato visual, não falava muito e gostava de brincar sozinha.
Mas nada disso parecia incomum para Onaiwu, consultora e escritora em Houston.
— Eu não reconheci que algo estava errado — contou. — Minha filha era como eu.
Legacy foi diagnosticada com autismo em 2011, pouco antes de completar 3 anos. Meses depois, aos 31 anos, Onaiwu também foi diagnosticada.
O autismo, um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades sociais e de comunicação, bem como comportamentos repetitivos, há muito tempo é associado aos meninos. Mas na última década, à medida que mais médicos, professores e pais têm estado atentos aos primeiros sinais do transtorno, a proporção de meninas diagnosticadas com autismo aumentou.
Em 2012, o Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) estimou que os meninos tinham 4,7 vezes mais chances de receber um diagnóstico de autismo do que as meninas. Em 2018, a proporção havia caído de 4,2 para 1. E nos dados divulgados pela agência no mês passado, o número era de 3,8 para 1. Nessa nova análise, com base nos registros de saúde e educação de mais de 226.000 crianças de 8 anos em todo o país, a taxa de autismo em meninas ultrapassou 1%, o maior já registrado.
Mais mulheres adultas como Onaiwu também estão sendo diagnosticadas, levantando questões sobre quantas meninas mais novas continuam sendo perdidas ou mal diagnosticadas.
— Acho que estamos ficando mais conscientes de que o autismo pode ocorrer em meninas e mais conscientes das diferenças — aponta Catherine Lord, psicóloga e pesquisadora de autismo da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
No primeiro estudo sobre autismo, publicado em 1943, Leo Kanner, psiquiatra na Universidade Johns Hopkins, identificou 11 crianças — oito meninos e três meninas — com “o poderoso desejo de solidão e mesmice”.
Somente em 1980 o autismo foi oficialmente reconhecido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o principal sistema de classificação usado pelos psiquiatras. Mas o diagnóstico foi definido de forma restrita, exigindo uma falta generalizada de interesse pelas pessoas, bem como deficiências de linguagem e fixações específicas, todas detectadas antes de a criança completar 30 meses de idade.
Com o tempo, à medida que os especialistas passaram a entender o autismo como um amplo espectro de comportamentos, os critérios do DSM foram ampliados. As crianças podem ter dificuldade em fazer amizades ou imitar os outros; atrasos na comunicação verbal ou não verbal; ou interesses restritos ou repetitivos, como a preocupação com temas específicos.
A maioria das meninas diagnosticadas com autismo naqueles primeiros dias tinha dificuldades intelectuais, tornando mais fácil identificá-las, explica Lord.
E muitos médicos, a psicóloga afirma, não sabiam que o autismo poderia se manifestar de forma diferente em meninas que apresentam manifestações físicas menos perceptíveis da condição. Estudos desde então mostraram que meninas com autismo são mais propensas do que os meninos a camuflar seus desafios sociais, às vezes imitando os comportamentos das meninas ao seu redor. Além disso, as meninas muitas vezes são tratadas de maneira diferente pelos adultos, recebendo ordens para sorrir ou sendo incentivadas a participar mais de brincadeiras em grupo. Mesmo os brinquedos usados pelos médicos para avaliar as crianças quanto ao autismo foram posteriormente criticados por serem mais atraentes para os meninos.
— Sempre houve meninas autistas — observa Lord, acrescentando: — Acho que as pessoas não se esforçam para saber que as meninas podem ser tratadas de maneira um pouco diferente.
A edição mais recente do DSM, publicada em 2013, reconheceu um espectro ainda mais amplo de comportamentos que podem indicar autismo e especificou que o transtorno em meninas pode passar despercebido por conta de “manifestações mais sutis de dificuldades sociais e de comunicação”.
Kevin Pelphrey, neurocientista e pesquisador sobre o autismo do Instituto do Cérebro da Universidade da Virgínia, conta que há mais de 15 anos, quando sua própria filha começou a apresentar sinais de autismo, nem ele os reconheceu. Os pediatras disseram a ele: “’Provavelmente não é autismo — ela é uma menina’”, lembra.
Os sistemas cerebrais envolvidos no comportamento social se desenvolvem mais rapidamente nas meninas, explica o neurocientista, o que pode ser um “fator de proteção” para meninas com autismo, especialmente na primeira infância.
Mas, à medida que envelhecem e as relações sociais entre as meninas se tornam mais complexas, as meninas com autismo começam a se destacar mais e são frequentemente intimidadas, destaca Pelphrey.
— Isso leva a outra grande diferença entre meninos e meninas: as meninas podem ser muito mais propensas a desenvolver ansiedade e depressão — salienta.
Esses problemas psiquiátricos também podem esconder o autismo subjacente e levar a diagnósticos incorretos.
Dena Gassner, de 61 anos, estudante de pós-graduação em serviço social na Adelphi University em Garden City, Nova York, teve problemas sociais e emocionais desde jovem, mas os médicos nunca mencionaram o autismo como um possível diagnóstico. Como muitas meninas com o transtorno, Gassner foi abusada sexualmente e seus problemas emocionais foram posteriormente atribuídos ao abuso. Ela também foi incorretamente diagnosticada com transtorno bipolar.
Ela não foi diagnosticada com autismo até os 40 anos, seis anos depois do diagnóstico do seu filho. A pós-graduanda conta que inicialmente ficou surpresa, em parte porque as dificuldades do seu filho — incluindo atrasos na linguagem e fixação em certas atividades e filmes — eram muito diferentes das dela.
— Eu nunca poderia ter olhado para meu filho e me visto em seu reflexo — observa.
Gassner e Onaiwu são membros do Comitê de Coordenação do Autismo Interinstitucional, um grupo de cientistas federais, acadêmicos, pais e adultos autistas que aconselham o Departamento de Saúde e Serviços Humanos em pesquisas e políticas.
Agora que conheceram muitas outras mulheres que foram diagnosticadas na idade adulta, ambas disseram suspeitar que a verdadeira lacuna sexual do autismo é menor do que os dados mostram.
— Eles não estão avaliando quantas meninas autistas existem — explica Gassner. — Eles estão avaliando quantas meninas autistas estamos encontrando.
Em uma revisão de dezenas de estudos em 2017, pesquisadores da Grã-Bretanha estimaram que a verdadeira proporção entre os sexos estava mais próxima de 3 para 1. Algumas pesquisas online que incluem pessoas que se autodiagnosticaram mostram uma inclinação ainda menor de homens para mulheres.
Embora o autismo seja sem dúvida subdiagnosticado em meninas, a maioria dos especialistas diz que é mais prevalente em meninos. O autismo tem fortes raízes genéticas, e alguns estudos têm sugerido que as diferenças entre os sexos podem resultar, pelo menos em parte, de diferenças biológicas inatas. Por exemplo, meninas com autismo tendem a carregar mutações genéticas maiores do que os meninos. As meninas podem precisar de um “golpe genético” maior para serem afetadas, explica Pelphrey, possivelmente porque carregam fatores genéticos protetores.
A mudança demográfica do autismo não se limita ao sexo. A proporção de crianças não-brancas com autismo também cresceu rapidamente na última década. No novo relatório do CDC, as taxas de autismo entre crianças negras e latinas de 8 anos ultrapassaram as de crianças brancas pela primeira vez.
— O autismo era uma coisa que acontecia com os garotinhos brancos, e às vezes esses garotinhos brancos se tornavam Trekkies ou programadores do Vale do Silício — observa Onaiwu, acrescentando: — Isso não aconteceu com o resto de nós — mas aconteceu.
Texto retirado do Site O Globo