Fonte: Mundo Afro –
Sérgio São Bernardo
Somos um rosto com identidades multi-facetadas, algumas faces aparentemente mais visíveis que outras. E isso nos levou a uma busca frenética por modelos filosóficos e jurídicos, com forte apelo etnocêntrico, como a salvação do mesmo e da negação do outro, ou a sublimação do outro no eu, o que acarretou a hibridez física e a hegemonia ideológica e material no Brasil.
O movimento negro baiano tem se reunido para vários motivos e interesses. Uma nova etapa tem surgido, sem que saibamos ao certo se isso tudo é fruto do que se pretendeu no passado ou se é um desvio programático do que se pretendia para o futuro. No entanto, é preciso lembrar que somos cria de nosso tempo e não apresentamos apenas dados e reclamamos utopias. A ocupação de espaços já é uma realidade presente. Mas, paradoxalmente, a ausência de espaços parece existir para nos lembrar de um passado que nos remete a uma luta incansável.
O Novembro Negro é um lugar de presença, não de utopia. A utopia é um não lugar. Os africanos não nos legaram a utopia. A presença é fundada num passado que se constrói em espirais que se reinventam como futuro. O futuro nasce de lutas que se afirmam na existência do aqui e agora. Esta é uma passagem que nos ajuda na afirmação como diferentes e que se projeta na luta pela igualdade.
O esforço de parte expressiva da inteligência brasileira tem sido no sentido de provar a generosidade do colonizador e a inferioridade, ou o atraso, dos povos colonizados e escravizados. Enquanto isso, uma nova narrativa histórica surge dos movimentos sociais negros. A segregação material e simbólica desses segmentos da população brasileira acusa uma invisibilidade construída à luz de uma doutrina de simulação do mesmo em relação ao outro.
A formação do pensamento no Brasil serviu a propósitos colonizatórios e a criação autoritária do Estado português logrou uma deliberada conformação societária composta de negros e indígenas enquanto “coletivo humano inferior”, segundo Kabenguele Munanga . Valem ser destacadas, algumas práticas sociais projetadas negativamente e criminalizadas pelo poder de Estado, a partir dos processos estruturantes da colonização, da escravidão e do racismo institucionalizado. Mesmo assim, o ideário da identidade negra perpetua-se enquanto projeto de poder e resiste baseado nos valores de igualdade dentro da racionalidade moderna e até mesmo de identidade numa perspectiva pluralista de justiça.
O outro nunca existiu como eu mesmo para o eu eurocêntrico. O outro é uma invenção do eu próprio. E este “eu” reificado funda a nacionalidade e a brasilidade. Mas, só serei reconhecidamente o outro radical se me assumir enquanto eu em minha integralidade onto-social, dirá Husserl. Essa tradição filosófica e jurídica se assenta fielmente ao modelo europeu de vida social e de organização estatal de uma mesmidade com atributos padronizados de cor, sexo e origem. É desse modo que se configura nosso ethos original – a cidadania é negra e indígena nos momentos de afirmação cultural, mas nossa cidadania é perversamente européia e branca nos momentos de afirmação da cidadania através dos mecanismos de obtenção e exercício dos direitos, oportunidades e condições de vida.
O espectro do estado democrático de direito, do qual o Brasil é corolário, encontra graves contradições em sua pretensão democrática e identitária. Enquanto isso, Tais Araújo, que protagoniza uma personagem negra da novela das oito, apanha, confirmando a desconfiança de muitos de qual é o lugar da mulher negra na teledramaturgia brasileira. Temos muito a fazer: reconstruirmos nosso próprio sonho até que velhas narrativas sejam recontadas para que os novembros não mais existam e tenhamos o ano todo!
Sérgio São Bernardo é advogado, professor da Uneb, presidente do Instituto Pedra de Raio
Foto: Walter de Carvalho| AG. A TARDE