Beba-me!

A primeira vez que vi Elza Soares, de pertinho, foi no Festival Fartura, em 2016 em São Paulo. Lembro que foi uma peleja chegar até o local do show, no Jockey Club, que fica localizado na Zona Sul da cidade, na chamada Cidade Jardim, que é um bairro e também é uma cidade dentro da cidade. Para chegar naquele Clube e sentir a presença de Elza, paguei um passaporte no valor de R$ 10,00 para ter acesso ao Festival todo, até hoje eu não acredito! Meia entrada para estudante, e eu estava estudante de doutorado à época. Assim, toma ônibus, metrô, caminhada, corrida: “São Paulo é o corre!” Era essa a sentença que eu ouvia sempre que perguntava a direção do Jockey, num misto de regozijo Vigoriano, do Gil do Vigor, e peleja cotidiana.

Do “planeta fome” para o Festival Fartura!

Lembro que comentei: – tem pouquíssimos negros aqui neste Festival. E as duas mulheres que atraiam a minha atenção; uma estava no palco mobilizando todo o meu corpo, do cóccix até o pescoço, e a outra estava na limpeza do palco, presente, mobilizando minhas memórias. A plateia olhava para a Elza, do palco, mas nem todos sabiam quantas Elzas a Elza carregava e carrega. Elza sabia…

Agora me vem a memória o poema de Roberta Tavares,

Mulheres de Fogo¹

Tu não sabes, mas eu sou aquelas mulheres de fogo
São aquelas mulheres de fogo o meu respirar
Essas mulheres de fogo do passado e do presente
Que pairam no escuro limpo de minha visão
Quando a insônia vem me lamber as espinhas
São essas mulheres de fogo o meu eu encarnado
Aquela visão a me socorrer na solidão da madrugada
Eu sou Tomázia coberta de véu de água
sou Lourença trazendo na face pálpebras de lua
Sou Adelaide acendendo velas de folha
Sou Marilda com olhos acessos de gruta
E quando me vês passar por aí não entendes
Eu carregando comigo essas mulheres
Todas elas de fogo, cor de tisna
E quando me vês andando por aí
A olhos nus não notas eu carregada por elas
Porque em mim caminham todas essas
Mulheres do passado e do presente

Ah, uma terceira Elza olhava toda aquela fartura e se encantava e admirava aquela ancestral. Isso depois de cruzar a cidade, de ônibus, metrô, no rumo mesmo, para chegar até aquele local de muita fartura, mas que uma cuia de tacacá na barraca do Pará, custava uma fortuna, e era uma cuia bem miudinha. Tudo daqui custava muito caro na Cidade Jardim, e eles não notavam a presença daqui, mas anotavam os pedidos de lá. Vamos lá, estando lá, fiquei impactada com a facilidade de chegar tão perto de Deus, da mulher Elza Soares, da cantora, ativista política, da compositora que, além de lata d´água na cabeça, carregava tantas mulheres, negras mulheres. Minha admiração parecia desproporcional ali naquele local, naquela fartura, que era costume por lá.

Nesse banquete, Elza dividia o palco com uma quarta mulher negra, artista brilhante. O sol fez morada nesse dia de presença de Anelis Assumpção. Era um show da Anelis recebendo Elza, e as duas estavam acompanhadas de músicos atentos, certeiros e elas cantavam e trocavam olhares e receitas de cura, evocavam guias musicais que nos abraçavam, nos alimentavam, nos acolhiam e nos convocavam a seguir em marcha musical, ancestral, alto astral. Uma dança, uma fartura de existência, resistência e persistência! O percurso, que no início fora um tanto tortuoso, tornou-se virtuoso, majestoso, com a presença soberana da música em forma de mulher, negra, deusa. Deusa escreve certo por linhas afiadas, alfinetadas!

Eu saí de lá embriagada de existência, justo daquela cidade bairro que, embora não tenha sido projetada para corpos como os nossos, foi ocupada por uma sede de viver, beber e honrar o legado de Elza Soares até o fim do mundo! Obrigada Anelis, por esse banquete inimaginável! Isso tudo em um show intitulado Anelis e os Amigos Imaginários.

Elza Soares é prato cheio! É copo-corpo potência! É Exu nas escolas! Beba-a!

Ana Silva

Poeta-Psicóloga-Feminista NegraAmazônida


¹ https://periodicos.uff.br/poiesis/article/view/47256

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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