Black blocs e gênero: o que mais nos dizem as máscaras negras?

Vândalos? Revolucionários? Mimados? Não são caracterizações positivas que usualmente rodeiam as conversas sobre os black blocs. Concordemos com a tática adotada ou não, um olhar sobre o fenômeno black bloc é crucial para se pintar um retrato da dita “nova ordem mundial”. Em um só movimento, os mascarados são um produto da globalização hegemônica, das democracias falidas e da repressão policial. Serão também um produto das masculinidades? Neste texto, contextualizo os black blocs para, em seguida, discutir questões de gênero acerca desse grupo de jovens mascarados.

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Soam desinformados aqueles que bravejam contra a suposta “violência inerente” aos black blocs. Primeiramente porque os mascarados, de orientação deliberadamente anarquista, não agem sempre por meio da depredação e vandalismo. Ademais, quando os atos de destruição são evocados, eles se dirigem a símbolos do capitalismo, a corporações ou à propriedade privada, nunca às pessoas. Sua crítica, por mais que se tente esvaziá-la de conteúdo político, é uma resposta agressiva a um sistema agressivo. Isso não implica em inocentá-los, por completo, de qualquer análise que pondere a efetiva contribuição desses grupos à construção do pensamento e da ação de esquerda.

Apesar de sua origem remeter aos anos 80 – a partir do movimentoAutonomen na Alemanha – os black blocs se tornaram mundialmente conhecidos após a chamada Batalha de Seattle, ocorrida em 30 de novembro de 1999 no noroeste dos Estados Unidos, e que foi motivada por protestos contra uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC). De acordo com Francis Dupuis-Déri em sua obra Black Blocs (2014), de onde extraio esses dados, a dura resposta da polícia estadunidense aos protestos, que englobaram manifestantes de variadas causas, não conseguira deter a “batalha” que, bem sucedida, derrubou a chamada “Rodada do Milênio” da tal reunião. Um marco, pois, do movimento de alterglobalização.

No Brasil, os black blocs “ganharam” a mídia no ano passado, quando as chamadas Jornadas de Junho colocaram sistematicamente multidões de jovens nas ruas. Tensionamentos nas avenidas que serviam de palco para as passeatas atravessaram os conflitos com a polícia, o grito dos fascistas de plantão, os coxinhas de verde-e-amarelo, os vermelhinhos partidarizados e, finalmente, os mascarados de roupas escuras que logo foram apontados como black blocs.Desde então, o conceito de black bloc tem se tornado uma categoria coringa à serviço do oportunismo da imprensa brasileira que, atacando Sininhos e Fábios, vê nos mascarados o pretexto para a recrudescência jurídico-policial.

No Brasil, os black blocs ganharam visibilidade com as manifestações de junho de 2013.
No Brasil, os black blocs ganharam visibilidade com as manifestações de junho de 2013.

Mas essa história que estou contando é bastante masculina. Osmanifestantes, os policiais, osfascistas, os vermelhos etc. E onde as mulheres entram nessa história? A rigor, se fôssemos contabilizar a participação das jovens nesses protestos, nos depararíamos com obstáculos metodológicos. O autor supracitado baseia-se em suas próprias observações para anotar que, dependendo do black bloc, a participação das mulheres pode se limitar a apenas 5% dos manifestantes (DUPUIS-DÉRI, 2014). É coisa demacho, então? Veremos.

Essas estimativas, todavia, são puramente especulativas. É difícil calcular a composição sexual de quem está por trás das máscaras, por dois motivos principais (sendo o primeiro deles bastante óbvio): eles ou elas são anônimos! Em segundo lugar, os black bloc são, acima de tudo, uma tática. Sua composição é efêmera e pode aglutinar desde velhos militantes a alguns novatos. O bloco não se constitui, em suma, como um grupo fechado em si, com um programa político bem delimitado e esclarecido (apesar de o anarquismo ser o denominador comum). Assim, se uma determinada manifestação é voltada, por exemplo, para questões ligadas ao feminismo, é esperado encontrar uma concentração de black blockers mulheres. Em outra ocasião – e.g. na hora do quebra-pau com a polícia – a balança poderá pender para o outro sexo.

Marchas de black blocs, os quais incluíram mulheres, em 2001 em Washington DC: sua pauta era a defesa dos direitos reprodutivos das mulheres.
Marchas de black blocs, os quais incluíram mulheres, em 2001 em Washington DC: sua pauta era a defesa dos direitos reprodutivos das mulheres.

Para avançar neste debate, devemos ir além do sexo dos participantes.Voltando um pouco no tempo, cabe ressaltar que as feministas (sobretudo as ditas “feministas radicais”) foram peça-chave para a constituição do já mencionado grupo “autonomista” alemão. O Autonomen teve raízes variadas, que iam do marxismo ao anarquismo, passando pelo ambientalismo e também pelo feminismo radical. Essas feministas defendiam plataformas de autonomia que alimentavam o ideal anarquista: rejeição à representação verticalizada, tomada de decisões consensual, distanciamento de órgãos institucionais e, evidentemente, a capacidade de fundar coletivos compostos unicamente por mulheres – marca, até hoje, de muitas vertentes feministas (incluindo as assim apelidadas radfems).

A despeito disso, não deixam de ser válidas as críticas de que os black blocs criariam uma esfera de atuação política demasiadamente masculina – ou melhor, forçosamente masculinizada. Há quem afirme que, em um protesto violento, gênero não mais existe, uma vez que não se poderia distinguir quem é o/a mascarado/a que arremessa a pedra. Ora, essa afirmação esquece que, por trás de cada manifestação, há a construção social do próprio manifestante: quem se interessa por essa forma de reivindicação? Quem se alinha com o anarquismo? Quem se sente integrado a um black bloc? E mais, quem está disposto a enfrentar a polícia?

Manifestação em Montreal: quem está por trás das máscaras? O que isso nos diz sobre as questões de gênero?
Manifestação em Montreal: quem está por trás das máscaras? O que isso nos diz sobre as questões de gênero?

É certo que, em grande medida, os confrontos entre mascarados e polícia militar são uma verdadeira encenação de masculinidades. Machos fardadosversus machos encapuzados, ambos sem identificação. Esse quadro dialoga diretamente com as representações mais convencionais de masculinidades, daquelas que incentiva os meninos, desde pequenos, a brincarem com armas, exércitos e carrinhos. Nesse sentido, é natural esperar, tal como relata Dupuis-Déri (2014), que há queixas por parte das mulheres de que os homens monopolizaram essa forma de ativismo. Sem falar nas situações em que a própria militância é palco de assédios e agressões sexuais.

Essa tese alerta para um panorama mais amplo da esquerda. Uma perspectiva de gênero faz falta. Assim, volta à cena aquela antiga denúncia de que a esquerda prima pelas questões de classe, deixando em posições marginais um aprofundamento sobre cor/raça, gênero, deficiência etc. Em consequência, cabe à insistência das próprias “minorias” (que não são minorias) em pautar o debate dentro de organizações de outras minorias. Uma loucura, sem dúvida. E necessária, pelo visto.

Por fim, fica o questionamento de como seria uma forma “radical” de ativismo que pudesse escapar de algumas dessas armadilhas. Aliás, será que a palavra “radical” implica necessariamente no uso da força para fins de depredação material? E, se sim, essa atuação é necessariamente masculinizada? Longe de essencializar as mulheres em torno de uma atmosfera pacifista, nossa intenção é chamar a atenção para o quanto determinados valores, por sua vez generificados, pautam modos de organização, eles mesmos, dispostos à subversão de formas tradicionais de dominação. Haverá, por trás dos capuzes negros, alguma perspectiva capaz de enfrentar também o sexismo e machismo das sociedades contemporâneas?

Fonte: Ensaios de Gênero

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