Por: MARCIA CARMO
O Brasil tem adotado um caminho diferente de seus vizinhos ao tratar de crimes políticos cometidos durante o regime militar. Enquanto o Brasil mantém a anistia ampla, geral e irrestrita e o caminho para a criação da Comissão da Verdade, a Argentina, o Uruguai e o Chile reabriram processos contra os acusados de crimes durante o período.
Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) adiou a análise de um recurso da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que questiona a validade da lei da anistia, o que poderia aproximar as ações do Brasil das de seus vizinhos do Cone Sul. Mas especialistas ouvidos pela BBC Brasil têm opiniões divergentes sobre os fatos no Brasil e na vizinhança.
O ex-ministro da Justiça e atual secretário de Direitos Humanos de São Paulo, José Gregori, entende que a anistia no Brasil teve apoio da sociedade e hoje a democracia brasileira é “mais sólida” que a da Argentina, onde os processos do regime militar foram reabertos a partir de 2003.
A presidente da ONG Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, acha que o Brasil está “dez passos atrás da Argentina”. Para ela, a Argentina tem dado exemplo de como lidar com a questão, incluindo medidas judiciais e iniciativas como o “escrache” (manifestação para expor publicamente acusados por crimes) dos responsáveis por tortura no Brasil.
O “escrache”, inspirado em ações semelhantes na Argentina, tem levado jovens brasileiros a escrever “aqui mora um torturador” na porta das casas dos acusados. Para Gregori, essa forma de protesto é perigosa. “Hoje são torturadores, mas depois podem ser aqueles que foram comunistas, como ocorreu com o macartismo (inspirado nas ideias de um senador americano contrário aos comunistas). Esse tipo de ação não ajuda a democracia brasileira”, disse.
Na opinião do secretário José Gregori, o processo democrático no Brasil é parecido com o da África do Sul, onde, para ele, a opção foi pela paz e não pelo conflito interno. O professor chileno de Ciências Políticas Guillermo Holzmann diz que o Brasil foi o único país da região que “manteve” a anistia ao longo dos vários governos democráticos, incluindo o de Dilma Rousseff.
Processo democrático
Segundo Gregori, no inicio do processo democrático os países da região implementaram anistias, mas depois foram mudando. “No Brasil, a anistia é geral e irrestrita, teve o apoio da sociedade brasileira, e foi uma das bases para a Constituição de 1988 e da nova democracia do país. A anistia vai continuar existindo”, disse o ex-ministro.
“Na Argentina houve anistia e no caminho eles mudaram (as regras). Tenho a maior paixão pela Argentina, mas acho que a nossa democracia no momento está no nível de maior avanço que a deles. Nosso processo de democracia é mais solido”, afirmou Gregori.
Para ele, o Brasil atualmente precisa enfrentar outras questões ligadas aos direitos humanos, como a exclusão social num momento de crise internacional. Gregori foi ministro no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e, no cargo, recordou, se empenhou para que fosse criada a Comissão da Verdade e pela aprovação da lei que reconheceu que os desaparecidos políticos (estimados em 500) eram juridicamente mortos.
“Com esta lei de mortos e desaparecidos, as famílias puderam entrar com o pedido de inventário. Na realidade o meu projeto, que se tornou lei, veio complementar a Lei de Anistia. Eu acho que a lei da anistia foi um dos consensos que permitiu a democracia no Brasil”, afirmou.
Ele observou que nos últimos anos o Brasil tem sido governado – tanto nos governos municipais, como estaduais e federal – por aqueles que foram “perseguidos” no regime militar.
Para Gregori, ao elegerem Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), Lula (2003-2011) e Dilma Rousseff, os eleitores brasileiros confirmaram a opção pelo fortalecimento democrático e “coerência”.
Comissão
Gregori afirmou ainda que a Comissão da Verdade, projeto do governo Lula e reafirmada na atual gestão, contou com “consenso” parlamentar e significa “um passo a mais” na democracia brasileira.
“A comissão não tem poderes para julgar ou para prender alguém. Mas pode ter mais acesso do que outra entidade e ouvir depoimentos no sentido de trazer informação sobre o que ocorreu. Ainda há muita coisa para se esclarecer, muita coisa nebulosa”, disse Gregori.
Para ele, falta ser esclarecido, por exemplo, se havia “hierarquização” das ordens para prender e torturar ou se as iniciativas eram originadas na própria cadeia.
Gregori defendeu mais transparência sobre o que ocorreu, o que será possível através da Comissão da Verdade, mas disse ser contra qualquer intenção de “ajuste de contas”, como sugeriu perceber nos vizinhos.
A presidente da ONG Tortura Nunca Mais apoiou a ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) solicitando que os crimes de tortura sejam excluídos da anistia, por serem “crimes comuns”, criticou as “limitações” da Comissão da Verdade e disse que o “escrache”, inspirado na Argentina e no Chile, é uma forma legítima de protesto.
“Como a OAB, nós entendemos que os crimes de sequestro e de tortura não prescrevem”, disse. Para ela, o Brasil “exportou” métodos de tortura para os países vizinhos, como o “pau de arara”, mas hoje é “o mais atrasado” da região na apuração do que ocorreu.
“O Brasil está dez passos atrás da Argentina. O Brasil é o mais atrasado (da região)”, disse.
Na sua opinião, a reparação às vítimas e seus familiares não deve ser somente financeira. “A sociedade de modo geral não tem informação sobre o que aconteceu e silenciou (sobre a anistia). Hoje, acho que a juventude que realiza a execração pública dos torturadores está certa e me emociona”, disse.
Ela recordou que o Brasil foi condenado pela Comissão de Direitos Humanos da OEA a investigar o que ocorreu. “O prazo era dezembro de 2011 e por isso foi criada a Comissão da Verdade, mas com limitações”, disse. Gregori acha que a Comissão “não conhece o Brasil” já que, na sua visão, o país tem avançado nesta área.
Fonte: Terra