Brasil tem 34 projetos de lei estadual para impedir uso da linguagem neutra

Assembleias de 19 estados e do DF discutem o tema, com maioria de propostas feitas por bolsonaristas; Rondônia foi primeiro lugar a sancionar lei deste tipo

Em 19 estados brasileiros e no Distrito Federal, o uso de gênero neutro na língua portuguesa é tema de projetos de leis, neste momento, de acordo com um levantamento feito pela Agência Diadorim. Ao todo, 34 propostas tramitam em Assembleias Legislativas do país. Todas querem impedir a variação na norma gramatical para além do binário masculino e feminino.

A primeira lei aprovada e sancionada é de Rondônia. Ela foi assinada pelo governador Marcos Rocha (PSL) em 19 de outubro e proíbe a linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas e em editais de concursos públicos.

Os lugares com mais projetos desse tipo, cada um com três propostas, são Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina. O Sudeste é a região onde há maior concentração de proposições, 11, seguido do Nordeste, com 10, e do Centro-Oeste e Sul, ambos com seis. No Norte, apenas o Amazonas discute o assunto, além de Rondônia, que se tornou o primeiro estado a aprovar uma legislação sobre o tema.

A linguagem neutra considera o uso da letra “e” em vez de “o” ou “a”, em substantivos, e a inclusão dos pronomes “elu”, “delu”, “ile” e “dile”, no idioma. Ela é reivindicada principalmente por grupos de pessoas agênero e não-binárias.

Confira os projetos de lei, de acordo com os estados:

Perfil dos parlamentares

A discussão nas Assembleias Legislativas brasileiras em torno da linguagem neutra é liderada majoritariamente por partidos de direita do espectro político-ideológico. Dos 34 projetos, 13 são de parlamentares eleitos pelo PSL, ex-partido do presidente Jair Bolsonaro. Os dados apurados pela Diadorim mostram ainda que 31 propostas são de autoria de homens, o que representa 88,57 % dos casos. Oito deles foram criados por deputados militares (sargentos, tenentes, capitães ou delegados). Há também um pastor e um “apóstolo”.

Para a presidenta da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Symmy Larrat, embora os deputados justifiquem em seus discursos a “defesa da família”, a política construída é “de morte”. “Com esse discurso de ódio, nos retiram da família, nos expulsam, nos colocam em vulnerabilidade”, diz ela. “Eles já aprenderam que quando eles contam essas mentiras, ganham voto. Esse movimento tem levado oportunistas religiosos ao poder.”

Os principais eixos temáticos das propostas visam à proibição da linguagem não-binária na educação, 28, e na administração pública, 16. Algumas incluem ambas as áreas. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, há projeto de lei tratando também de restrição no campo de produções culturais, um em cada estado.

Larrat acredita que o tema da linguagem neutra deve estar presente também nas eleições de 2022. “É mais um assunto de um movimento de mentiras. Vai entrar no discurso do mesmo jeito que entraram a ‘mamadeira de piroca’ e todas as mentiras sobre a vacina”, afirma. “Mas eu espero que as pessoas tenham percebido que isso está matando gente.”

A ABGLT, diz a presidenta, tem orientado seus representantes em todos os estados brasileiros a dialogarem com deputadas e deputados para se opor aos PLs.

A linguagem neutra na academia e nas artes

A linguagem neutra é um mecanismo de inclusão e visibilidade, de acordo com o linguista Iran Melo, coordenador do NuQueer (Núcleo de Estudos Críticos do Discurso e Teoria Queer), da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). Para ele, a língua também é uma ferramenta de disputa de poder. “O que repercute na língua é o que repercute na demanda social de maneira geral. De modo que as pessoas têm se reconhecido cada vez mais fora dos padrões de masculino e feminino e elas têm promovido novas maneiras de representatividade sobre suas identidades pela língua”, opina.

O enfrentamento aos conceitos hegemônicos de gênero desperta reações violentas, pois “há um grande projeto de sociedade que não aceita as possibilidades de as pessoas terem liberdade com o corpo, com a vida, uma liberdade da categoria fundamental de suas vidas que é o gênero”, segundo o pesquisador. “Qualquer coisa que venha promover um outro modo de ser no mundo se apresenta como ameaça para esse projeto sócio-cultural, sócio-político.”

Em 24 de julho deste ano, o uso da palavra “todes” em uma postagem do Museu da Língua Portuguesa, nas redes sociais, despertou reação do secretário especial de Cultura do governo federal, Mário Frias. Ele acusou a instituição de vandalizar a cultura e afirmou que tomará medidas “para impedir que usem dinheiro público federal para piruetas ideológicas”. Após os ataques de Frias, nove projetos de lei foram apresentados por deputados estaduais.

A linguagem neutra também já vem sendo incluída em obras artísticas no país. Recentemente, ela foi anunciada como elemento narrativo na novela “Cara e Coragem”, da Globo, escrita por Claudia Souto e prevista para estrear em maio de 2022. Na exposição sobre a vida e obra de Maria Carolina de Jesus — em cartaz até 30 de janeiro de 2022 no Instituto Moreira Salles de São Paulo — , os textos da curadoria incluem termos de gênero neutro, como “todes” e “outres”.

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